Chegamos agora ao caso mais
aclamado pelos críticos quando o assunto é Deus mandando matar: a conquista de
Canaã, tratada por muitos ateus (e por não poucos cristãos também) como um
verdadeiro “genocídio” perpetrado a mando de Deus. Alguns mais exaltados vão
além, alegando que se quisermos seguir a Bíblia à risca, deveríamos sair por aí
matando todos os “homens, mulheres e crianças” descrentes, a exemplo do que
Josué teria feito em tantas cidades. Portanto, a primeira coisa que precisa ser
dita logo de cara é que as guerras de conquistas se limitavam à terra de Canaã,
naquele período específico e para aqueles povos específicos.
Deus expressamente proibiu
Israel de conquistar o território de outras nações vizinhas, como somos
informados a respeito de Moabe (Dt 2:9), Amon (Dt 2:19) e Edom (Dt 2:4-5). Como
Copan comenta, “a apropriação de terras não era
permitida por Deus, e Israel não tinha o direito de conquistar além do que Deus
havia sancionado”. Se nem mesmo
naquela época Israel era autorizado a conquistar o território de outras nações
ou exterminá-las, muito menos o Israel moderno, a Igreja ou os países cristãos estariam
hoje autorizados a executar quem quer que seja em nome de Deus, a despeito do
que quer que tenha acontecido com os cananeus.
Na verdade, quando vamos à
Bíblia, vemos que os próprios cananeus eram protegidos por Deus até o
momento da conquista:
“Somente
não sejam rebeldes contra o Senhor. E não tenham medo do povo da terra, porque
nós os devoraremos como se fossem pão. A proteção deles se foi, mas o
Senhor está conosco. Não tenham medo deles!” (Números 14:9)
O que teria acontecido para que
mais tarde o livro de Deuteronômio registrasse que “conquistamos
todas as suas cidades e as destruímos totalmente, matando homens, mulheres e crianças,
sem deixar nenhum sobrevivente” (Dt 2:34)? Ademais, este texto não
contraria nossa conclusão preliminar, de que Deus nunca mandou matar crianças e
mulheres inocentes? Antes de entendermos essa linguagem bíblica, precisamos primeiro
compreender as razões por que as nações cananeias foram atacadas, para início
de conversa.
Já vimos que, de acordo com o
próprio registro bíblico, elas eram protegidas por Deus até então, o que
significa que Ele possivelmente impediu que elas fossem exterminadas por outros
povos em um momento anterior na história – o que por si só já refuta aqueles
que dizem que YHWH tinha um “ódio étnico” contra os cananeus. E isso porque sua
maldade ainda não tinha atingido a «medida completa», o que significa que elas
ainda não estavam totalmente corrompidas a ponto do juízo divino ser executado
sobre elas. É assim que Deus diz a Abraão:
“Então
o Senhor lhe disse: ‘Saiba que os seus descendentes serão estrangeiros numa
terra que não lhes pertencerá, onde também serão escravizados e oprimidos por
quatrocentos anos. Mas eu castigarei a nação a quem servirão como escravos e,
depois de tudo, sairão com muitos bens. Você, porém, irá em paz a seus
antepassados e será sepultado em boa velhice. Na quarta geração, os seus descendentes
voltarão para cá, porque a maldade dos amorreus ainda não atingiu a medida
completa”
(Gênesis 15:13-16)
Se Jeová era um “deus tribal da
guerra” e mandou atacar os cananeus por puro ódio étnico, como alegam os teólogos
liberais, por que ele teria dado quatrocentos anos para os cananeus se
arrependerem? Essa enorme longanimidade de Deus para com os inimigos do
Seu povo escolhido, a ponto de permitir que os próprios hebreus fossem escravos
no Egito por longas gerações até que os cananeus esgotassem todas as chances
que lhes foram dadas, contrasta fortemente com a narrativa apresentada pelos
críticos.
Vale ressaltar que o mesmo
critério do tempo concedido aos cananeus também foi usado com Deus para com o
Seu próprio povo, Israel. Ainda no início do reino de Judá, somos informados
que “como Roboão se humilhou, a ira do Senhor
afastou-se dele, e ele não foi totalmente destruído. Aliás, ainda havia algo de
bom em Judá” (2Cr 12:12). Cerca de 350 anos mais tarde, quando os
pecados de Israel já haviam ultrapassado todos os limites, os babilônicos
invadem o reino e os judeus sobreviventes são levados em cativeiro. Deus não
usa de dois pesos e duas medidas: o mesmo padrão moral que Ele estabeleceu para
o Seu povo também foi estabelecido para os cananeus.
Os cananeus não apenas adoravam
falsos deuses, mas falsos deuses que exigiam sacrifícios infantis e “se envolviam em todos os tipos de atividade sexual, ao
contrário do Deus bíblico”.
Copan descreve o contraste entre a moralidade sexual prescrita na lei de Deus e
a vigente na religião cananeia:
Israel estava cercado por
nações que tinham cultos de fertilidade. Fazer sexo com uma prostituta em um
templo significava conectar-se espiritualmente com uma divindade específica. Em
contraste, Levítico 15 apresenta uma espécie de “sistema de controle de
emissões”! A mensagem para Israel era que o sexo tem seu lugar apropriado. Deus
não é pudico quanto ao sexo. Deus é o autor do sexo mutuamente satisfatório
entre marido e mulher (Gn 2:24; Pv 5:15-19; Cântico dos Cânticos). No entanto,
em contraste com seus vizinhos, Israel precisava levar a sério a restrição e
disciplina na atividade sexual. Embora o sexo trouxesse impureza temporária,
Israel foi lembrado de que era proibido no santuário como parte de um ritual
religioso – ao contrário dos rituais sexuais na religião cananeia.
A imoralidade dos deuses
adorados pelos cananeus se refletia na conduta dos próprios cananeus, que os
imitavam “como uma espécie de ato mágico: quanto
mais sexo nos altos cananeus, mais isso estimularia o deus da fertilidade Baal
a fazer sexo com sua consorte, Anath, o que significava mais sêmen (chuva)
produzido para regar a terra”.
Seus templos eram verdadeiros
centros de orgia, sodomia e prostituição, com inúmeros prostitutos e
prostitutas cultuais servindo nos templos pagãos e praticando atos sexuais abertamente
no templo como parte do culto ao deus que serviam. Seus rituais incluíam “orgias ritualísticas sazonais em que adolescentes eram
violentadas e depois mortas por sacerdotes a fim de garantir a fertilidade da
terra”.
A perversão sexual estava
intimamente ligada à «sede de sangue e à violência das divindades cananeias».
Anath, a consorte de Baal, após beber o sangue de suas vítimas se sentava
cercada por cadáveres, sendo “comumente retratada
com uma guirlanda de crânios em volta do pescoço”.
William Foxwell Albright (1891-1971), o americano pioneiro da arqueologia,
descreveu os massacres dessa divindade cananeia nas seguintes palavras:
O sangue era tão profundo
que ela o penetrou até os joelhos – não, até o pescoço. Sob seus pés estavam crânios,
acima de suas mãos cabeças voavam como gafanhotos. Em seu prazer sensual, ela
se decorou com cabeças suspensas enquanto prendia as mãos ao cinto. Sua alegria
na carnificina é descrita em uma linguagem ainda mais sádica: “Seu fígado
inchou de tanto rir, seu coração estava cheio de alegria, o fígado de Anath
estava cheio de exultação”. Posteriormente, Anath “ficou satisfeita” e lavou as
mãos com sangue humano antes de prosseguir para outras ocupações.
Era esse o tipo de divindade que
os cananeus adoravam e nas quais se inspiravam, o que nos ajuda a entender por
que o Senhor tinha “repugnância” delas (Dt 7:25) – longe de ser um ciúme bobo, como
argumentam os críticos. Toda essa violência das divindades cananeias se
refletia no comportamento do povo, algo também corroborado pelas escavações
arqueológicas. O renomado arqueólogo Rodrigo Silva, por exemplo, escreve:
Uma recente análise feita
sobre os crânios do cemitério real de Ur, descoberto no Iraque há quase um século,
parece sustentar uma interpretação mais terrível do que a anterior sobre os
sacrifícios humanos associados a enterros da elite da antiga Mesopotâmia. Os
servos do palácio, no dia do sepultamento de alguém da família real, eram
mortos juntamente com o nobre falecido, e, diferentemente do que até então se cria,
eles não tomavam veneno para morrer serenamente, mas eram perfurados na cabeça
com um instrumento pontiagudo, provavelmente uma lança. Depois eram colocados
no sepulcro real.
De todos os sacrifícios humanos praticados,
nenhum era mais terrível que o sacrifício infantil. Uma lista de abominações
praticadas pelos cananeus, a respeito das quais Deus adverte o Seu povo a não
seguir pelo mesmo caminho, é encontrada em Deuteronômio 18:9-12, onde as crianças
queimadas no fogo aparecem no topo da lista:
“Quando
entrarem na terra que o Senhor, o seu Deus, lhes dá, não procurem imitar as
coisas repugnantes que as nações de lá praticam. Não permitam que se ache
alguém entre vocês que queime em sacrifício o seu filho ou a sua filha; que
pratique adivinhação, ou dedique-se à magia, ou faça presságios, ou pratique
feitiçaria ou faça encantamentos; que seja médium ou espírita ou que consulte
os mortos. O Senhor tem repugnância por quem pratica essas coisas, e é por
causa dessas abominações que o Senhor, o seu Deus, vai expulsar aquelas nações
da presença de vocês”
(Deuteronômio 18:9-12)
Para a surpresa de muitos, Jeová
era uma das poucas divindades que não aceitava o sacrifício de crianças
oferecidas em holocausto, bastante comum nos povos ao redor e que continuou
perdurando por séculos, a ponto de mesmo entre os israelitas haver quem sacrificasse
a Moloque, incluindo reis como Manassés (2Rs 21:6). Contra isso, o Senhor
assevera:
“O
Senhor, o seu Deus, eliminará da sua presença as nações que vocês estão a ponto
de invadir e expulsar. Mas, quando vocês as tiverem expulsado e tiverem se
estabelecido na terra delas, e depois que elas forem destruídas, tenham cuidado
para não serem enganados e para não se interessarem pelos deuses delas,
dizendo: ‘Como essas nações servem aos seus deuses? Faremos o mesmo’. Não
adorem ao Senhor, ao seu Deus, como fazem essas nações, porque, ao adorarem os
seus deuses, elas fazem todo tipo de coisas repugnantes que o Senhor odeia,
como queimar seus filhos e filhas no fogo em sacrifícios aos seus deuses” (Deuteronômio
12:29-31)
“Não
entregue os seus filhos para serem sacrificados a Moloque. Não profanem o nome
do seu Deus. Eu sou o Senhor” (Levítico 18:21)
“Se
o povo deliberadamente fechar os olhos quando alguém entregar um dos seus
filhos a Moloque, e deixar de executá-lo, voltarei o meu rosto contra aquele
homem e contra o seu clã e eliminarei do meio do seu povo tanto ele quanto
todos os que o seguem, prostituindo-se com Moloque” (Levítico 20:4-5)
O salmista denuncia os
israelitas que “prestaram culto aos seus ídolos,
que se tornaram uma armadilha para eles. Sacrificaram seus filhos e suas filhas
aos demônios. Derramaram sangue inocente, o sangue de seus filhos e filhas
sacrificados aos ídolos de Canaã; e a terra foi profanada pelo sangue deles” (Sl 106:36-38), e em Jeremias o próprio Senhor
atesta que uma das causas do exílio devia-se justamente ao fato de que “construíram o alto de Tofete no vale de Ben-Hinom, para
queimarem em sacrifício os seus filhos e as suas filhas, coisa que nunca ordenei
e que jamais me veio à mente” (Jr 7:31);
“prática repugnante que jamais imaginei; e, assim,
levaram Judá a pecar” (Jr
32:35).
Henry H. Halley assim se
expressou diante das descobertas arqueológicas na região:
Encontraram grande quantidade
de jarros contendo os despojos de crianças que tinham sido sacrificadas a Baal...
a área inteira se revelou como sendo um cemitério de crianças recém-nascidas.
(...) Era assim, praticando a licenciosidade como rito, que os cananeus
prestavam seu culto aos deuses, e também assassinando seus primogênitos como
sacrifício aos mesmos deuses. Parece que, em grande escala, a terra de Canaã
tornou-se uma espécie de Sodoma e Gomorra de âmbito nacional. (...) Alguns
arqueólogos que têm escavado as ruínas das cidades dos cananeus admiram-se de
Deus não as haver destruído há mais tempo.
Até mesmo o humanista e
arqueólogo William Foxwell Albright (1891-1971), que não tinha nada de
religioso, chegou a dizer para uma plateia de críticos da Bíblia na Universidade
Johns Hopkins que Israel fez na verdade um favor para o mundo ao exterminar “culturas de índole tão doentia como aqueles povos
pagãos”.
Lembre-se ainda que Israel não
conquistou o território cananeu simplesmente porque os cananeus eram maus, mas
porque este era o território que lhe pertencia quando a fome levou os hebreus a
descerem ao Egito, nos tempos de José. Mais tarde eles foram escravizados durante
séculos e impedidos de voltar, até Deus levantar Moisés para livrar Seu povo do
jugo da escravidão. Quando foram libertos da escravidão do Egito quiseram
voltar à terra que seu antepassado Abraão havia comprado dos cananeus (Gn
23:1-20), mas encontraram cidades fortificadas e habitantes hostis, que não
aceitaram a nova companhia e lhes fizeram guerra na primeira oportunidade.
Portanto, embora a conquista de
Canaã não possa ser considerada uma “guerra defensiva”, ela fazia sentido tanto
do ponto de vista jurídico quanto moral. Era voltar à terra que lhes pertencia
por direito, ou continuar escravos no Egito para sempre. Como Deus não dá
nenhum ponto sem nó, Ele administrou a situação de uma forma que o êxodo
israelita do Egito coincidiu com o momento em que os cananeus haviam atingido a
«medida completa» de iniquidade, o que tornava moralmente aceitável a conquista
da terra, uma vez que Deus jamais expulsaria um povo justo da terra em que
habita.
Diante de todo esse quadro, poucos
contestariam que a guerra de Israel foi justa, assim como foi justo o juízo de
Deus sobre os cananeus. Guardadas as devidas proporções, assim como Hitler
precisava ser contido na Segunda Guerra, as atrocidades dos cananeus precisavam
de um ponto final. A dificuldade reside particularmente na suposta matança de
crianças e recém-nascidos, que a própria Escritura afirma serem incapazes de “rejeitar o erro e escolher o que é certo” (Is 7:15) – ou seja, que estão em um
estado de inocência.
Não poucos cristãos sinceros,
mas presos à leitura tradicional e superficial dos textos tentam contornar o
problema simplesmente afirmando que a maldade dos cananeus era tão grande que
era preciso executar até mesmo os bebês para não deixar que eles crescessem e
perpetuassem essas maldades, o que além de parecer extremamente cruel não
parece a medida das mais necessárias, uma vez que esses bebês seriam criados
pelos próprios israelitas na ausência de pai e mãe (mortos), e portanto o
“risco” deles darem continuidade à prática seria o mesmo de qualquer bebê israelita.
Além disso, se os israelitas
podiam assassinar crianças em nome de Deus, que moral teríamos para dizer que
quando os jihadistas fazem o mesmo estão cometendo uma monstruosidade moral? Um
fundamentalista responderia que é porque um fez pelo “Deus certo” e o outro
pelo “Deus errado”, mas dificilmente essa explicação satisfaria a muitos. Se as
práticas são as mesmas e a única diferença é em nome de quem que se fez, isso é
o mesmo que dizer que Jeová e as divindades cananeias sedentas de sangue tinham
essencialmente o mesmo caráter, com a diferença de um existir e as outras não.
A razão por que cremos que a
Bíblia é a Palavra de Deus, e não o Corão ou qualquer outro livro sagrado,
passa muito pelo fato da mensagem ali pregada ser essencialmente
diferente dos demais, se sobressaindo em relação a eles em todos os aspectos
morais e espirituais, não somente porque Jeová é o Deus verdadeiro. Por essa
ótica, se por um azar o Deus verdadeiro fosse o dos jihadistas, não apenas
poderíamos, mas deveríamos praticar os atos mais imorais possíveis e
imagináveis – de atentados terroristas até o estupro de crianças – para agradar
esse Deus. “Mas Deus jamais mandaria fazer isso”, dirá você. E é justamente
por isso que Ele jamais mandaria matar crianças, seja em Canaã ou em
qualquer outro lugar!
É justamente por Deus se diferenciar
dessas falsas divindades do paganismo que Ele é o Deus verdadeiro, e não
mais um em meio a um panteão de divindades sádicas e brutais. E precisamente por
ser diferente dos outros deuses, Ele também quer que os Seus adoradores se
diferenciem das práticas dos pagãos. Isso fica nítido no texto em que o Senhor
diz a Israel que eles não conquistariam Canaã simplesmente por serem “o povo
escolhido”, como se pudessem agir do mesmo modo que eles, mas em função da
maldade dos cananeus:
“Não
é por causa de sua justiça ou de sua retidão que você conquistará a terra
deles. Mas é por causa da maldade destas nações que o Senhor, o seu Deus, as
expulsará de diante de você, para cumprir a palavra que o Senhor prometeu, sob
juramento, aos seus antepassados, Abraão, Isaque e Jacó” (Deuteronômio 9:5)
Ademais, se o principal problema
em Canaã era o sacrifício infantil, de que forma mandar executar todas as
crianças a sangue frio resolveria o problema? Tudo o que teríamos seriam mais
crianças mortas. Poucos seriam capazes de justificar o genocídio indígena
praticado pelos espanhóis no Novo Mundo, assassinando ao fio da espada mulheres
e crianças que nada fizeram contra eles, mesmo sendo fato conhecido que os
nativos praticavam sacrifícios infantis.
Embora os fundamentalistas
tenham a melhor das intenções ao tentar “justificar” aquilo que eles pensam que
foi a ordem de Deus, eles estão simplesmente prestando um desserviço perante os
ateus e secularistas mundo afora, dando-lhes um prato cheio para pintar o Deus
judaico-cristão como um monstro. E toda essa justificação moral pouco eficiente
não é nem mesmo necessária, já que bastaria um estudo mais cuidadoso das
Escrituras para perceber que Deus nunca mandou ninguém efetivamente matar
criança alguma.
Um dos casos que ilustram isso de
forma mais emblemática é o dos amalequitas, que muitos creem que foram completamente
exterminados – do recém-nascido ao homem mais velho – por ordem de Samuel. Analisaremos
esse caso à parte antes de explicarmos por que os textos falam em “matar”
mulheres e crianças.
• O “genocídio” dos
amalequitas
De todos os textos do Antigo
Testamento que trazem uma ordem de matar mulheres e crianças, poucos parecem
tão claros quanto este:
“Assim
diz o Senhor dos Exércitos: ‘Castigarei os amalequitas pelo que fizeram a
Israel, atacando-os quando saíam do Egito. Agora vão, ataquem os amalequitas e
consagrem ao Senhor para destruição tudo o que lhes pertence. Não os poupem;
matem homens, mulheres, crianças, recém-nascidos, bois, ovelhas, camelos e
jumentos’”
(1º Samuel 15:2-3)
Após a ordem pela boca do
profeta Samuel, “Saul atacou os amalequitas por
todo caminho desde Havilá até Sur, a leste do Egito. Capturou vivo Agague, rei
dos amalequitas, e exterminou o seu povo. Mas Saul e o exército
pouparam Agague e o melhor das ovelhas e dos bois, os bezerros gordos e os
cordeiros. Pouparam tudo que era bom, mas a tudo que era desprezível e inútil destruíram
por completo” (1Sm
15:7-9). O texto diz «exterminou o seu povo» e «o destruíram por completo», dando
a entender que apenas o rei Agague foi poupado. Contudo, nem mesmo Agague
sobrevive, como o texto continua:
“Então
Samuel disse: ‘Traga-me Agague, o rei dos amalequitas’. Agague veio confiante,
pensando: ‘Com certeza já passou a amargura da morte’. Samuel, porém, disse:
‘Assim como a sua espada deixou mulheres sem filhos, também sua mãe ficará sem
o seu filho, entre as mulheres’. E Samuel despedaçou Agague perante o Senhor,
em Gilgal”
(1º Samuel 15:32-33)
Quem quer que leia essa perícope
com o olhar de um leitor contemporâneo vai facilmente concluir que houve aqui
um genocídio completo: todos os homens, mulheres e crianças amalequitas foram
completamente exterminados, sem exceção, como o texto parece indicar. Contudo, apenas
dois capítulos adiante, quem é que estava em guerra com Israel novamente?
Adivinhe: “Davi e seus soldados atacavam os
gesuritas, os gersitas e os amalequitas, povos que, desde tempos
antigos, habitavam a terra que se estende de Sur até o Egito” (1Sm 27:8).
Não só o texto diz que os
amalequitas estavam em guerra com Davi, mas diz que eles habitavam a terra «desde
os tempos antigos», indicando que não houve extermínio algum. Eles continuavam
ali, onde sempre estiveram. Não somente isso, mas tinham tropa suficiente para novos
ataques – o tempo verbal, “atacavam”, indica um ato contínuo. Tampouco podemos
supor, como fazem alguns, que Saul exterminou quase todos eles mas alguns
poucos conseguiram fugir, porque um punhado de fugitivos jamais seria capaz de
se levantar em guerra com a nação de Israel novamente apenas alguns anos
depois.
Como se não bastasse, alguns
capítulos adiante, os amalequitas têm êxito em cercar uma cidade israelita,
queimá-la e incendiá-la, mostrando novamente que não estavam para brincadeira:
“Quando
Davi e seus soldados chegaram a Ziclague, no terceiro dia, os amalequitas
tinham atacado o Neguebe e Ziclague, e haviam incendiado a cidade. Levaram como
prisioneiros todos os que lá estavam: as mulheres, os jovens e os idosos. A
ninguém mataram, mas os levaram consigo, quando prosseguiram seu caminho. Ao
chegarem a Ziclague, Davi e seus soldados encontraram a cidade destruída pelo
fogo e viram que suas mulheres, filhos e filhas haviam sido levados como
prisioneiros” (1º Samuel 30:1-3)
Que esse exército não era pouco
numeroso, pode ser visto no fato de que mesmo Davi tendo atacado “no dia seguinte, desde o amanhecer até à tarde” (1Sm
30:17), ainda assim não menos que “quatrocentos
jovens montaram em camelos e fugiram” (1Sm 30:17), o que indica que o
exército total devia ter vários milhares de soldados.
A única conclusão lógica e
racional é que, embora o texto de 1º Samuel 15 esteja expresso em termos
abrangentes e universais («homens, mulheres e crianças», «exterminou o seu povo»,
«o destruíram por completo»), isso nada mais era que um exagero de linguagem –
um recurso conhecido como hipérbole, sobre o qual teremos muito a falar
mais à frente. O texto presumivelmente diz respeito apenas ao “extermínio” do
exército amalequita naquela região específica, mas para exaltar o triunfo se
expressa em termos universais (não como quem quer enganar o leitor, mas como
quem sabe que o leitor compreende a hipérbole).
Mesmo após as guerras de Davi,
que costumava ser bastante bem-sucedido em suas batalhas, os amalequitas
continuaram em guerra com Israel até pelo menos a época do rei Ezequias, mais
de dois séculos depois: “E quinhentos desses
simeonitas, liderados por Pelatias, Nearias, Refaías e Uziel, filhos de Isi,
invadiram as colinas de Seir. Eles mataram o restante dos amalequitas que tinha
escapado, e ali vivem até hoje” (1Cr
4:42-43). Isso significa que agora sim os amalequitas foram completamente
dizimados? Também não, porque mais de dois séculos mais tarde, vemos um
amalequita no livro de Ester:
“Depois
desses acontecimentos, o rei Xerxes honrou a Hamã, filho de Hamedata, descendente
de Agague, promovendo-o e dando-lhe uma posição mais elevada do que a de
todos os demais nobres” (Ester 3:1)
Se você leu o texto de 1º Samuel
15 com atenção, deve se lembrar quem era esse Agague: sim, o rei que Samuel «despedaçou
perante o Senhor». Se Hamã descendia dele, isso significa que pelo menos os
seus filhos continuaram vivos para dar continuidade à geração (e à sua eterna
guerra com os israelitas). O próprio texto de 1º Samuel 15 nos brinda com um
detalhe que passa despercebido por muitos. Leia novamente o que Samuel disse, agora
com a ajuda do trecho sublinhado:
“Assim
como a sua espada deixou mulheres sem filhos, também sua mãe ficará sem o
seu filho, entre as mulheres’. E Samuel despedaçou Agague perante o Senhor,
em Gilgal” (1º Samuel 15: 33)
Note que Samuel disse que a mãe
do rei Agague ficaria sem o seu filho, porque ele seria morto. Mas que mãe, se Saul
supostamente já tinha exterminado todas as mulheres e trouxe apenas Agague como
espólio de guerra? É evidente que Samuel sabia que a mãe de Agague continuava
viva, porque israelita nenhum saiu do campo de batalha para invadir as cidades
amalequitas e tirar a vida de inocentes. Todos os que foram mortos, foram
mortos no campo de batalha, não em vilarejos ou povoados. Copan diz que “a cidade de Amaleque (1Sm 15:5) era provavelmente um
acampamento militar fortificado”.
Assim, quando Samuel se ira por
Saul ter poupado Agague, a ideia que o texto quer transmitir não é que Saul já
tinha massacrado todo o resto da população amalequita e só havia restado ele, e
sim que no campo de batalha Saul havia matado todos os que teve
oportunidade, mas poupou Agague como um troféu de guerra – justamente quem mais
merecia morrer! É isso o que explica a fúria de Samuel, que jamais condenaria Saul
por poupar crianças inocentes ao mesmo tempo em que pinta Agague como um
monstro justamente por tirar a vida de crianças inocentes.
Mas se realmente os israelitas
não mataram mulheres nem crianças amalequitas, e se mesmo muitos dos próprios
soldados amalequitas conseguiram fugir e escapar com vida, o que explica a
linguagem tão universal e enfática de 1º Samuel 15, que pegaria facilmente
qualquer leitor desprecavido dos nossos dias? A resposta está em um recurso
usado ainda hoje, mas muito mais usado naquela época, ainda mais em contexto
militar: a hipérbole.
• A linguagem hiperbólica de
extermínio
O dicionário define hipérbole
como “uma figura de linguagem muito comum utilizada
para passar uma ideia de intensidade por meio de expressões exageradas
intencionalmente”.
Ainda nos tempos do Talmude, os rabinos observavam o caráter hiperbólico de
muitos textos do Antigo Testamento. No Talmude Babilônico Chullin, por exemplo,
lemos que
a Gemara fornece outros
exemplos de declarações que não são entendidas literalmente. Rabino Ami diz: Em
alguns casos, a Torá falava empregando uma linguagem [havai] exagerada,
os Profetas falavam empregando uma linguagem exagerada e os Sábios falavam
empregando uma linguagem exagerada.
Um dos exemplos citados pelo
rabino Ami é o texto que diz: “Hoje você está
atravessando o Jordão para entrar na terra e conquistar nações maiores e mais
poderosas do que você, as quais têm cidades grandes, com muros que vão até o
céu” (Dt 9:1), embora ninguém realmente acredite que a
muralha dos cananeus era tão grande que chegava ao céu. Quando assumiu o
reinado, o exército de Davi em Ziclague “tornou-se
tão grande como o exército de Deus” (1Cr 12:22), embora tenha
contabilizado aproximadamente 600 mil soldados (1Cr 12:24-36), muito menos que
o total de outras nações poderosas da época e infinitamente menos que o «exército
de Deus» no céu.
Jeremias, o profeta, amaldiçoou
o homem que levou a notícia da gravidez aos seus pais porque “não me matou no ventre materno nem fez da minha mãe o
meu túmulo, e tampouco a deixou permanentemente grávida” (Jr 20:17), por
mais difícil que seja imaginar uma mulher «permanentemente grávida». Nas mãos
de Nabucodonosor, diz Daniel, Deus “colocou a
humanidade, os animais selvagens e as aves do céu. Onde quer que vivam, ele fez
de ti o governante deles todos” (Dn 2:38), mesmo que evidentemente nem
toda a humanidade, muito menos os animais, estavam sob o domínio babilônico.
Quando o rei Roboão “enviou Adonirão, chefe de trabalhos forçados, todo
o Israel o apedrejou até à morte” (1Rs 12:18), mas ninguém imagina que
literalmente toda a população de Israel (incluindo mulheres e crianças) se
reuniu para tacar pedras naquele homem.
Vemos algo parecido no próprio
contexto da conquista de Canaã. O capítulo 11 de Josué termina dizendo que “Josué conquistou toda a terra, conforme o Senhor
tinha dito a Moisés, e deu-a por herança a Israel, repartindo-a entre as suas
tribos” (Js 11:23), mas logo no início do capítulo somos informados que
os cananeus continuavam vivendo “a leste e a oeste”
(v. 3), que os amorreus, os hititas, os ferezeus e os jebuseus
continuavam vivendo nas montanhas (v. 3) e que os heveus continuavam vivendo «na
região do Mispá» – ou seja, todos aqueles mesmos povos que Josué já tinha
supostamente exterminado e tomado posse de toda a terra.
Em outro trecho, Josué usa uma
linguagem ainda mais enfática quando afirma:
“Assim
Josué conquistou a região toda, incluindo a serra central, o Neguebe, as
encostas e as vertentes, e derrotou todos os seus reis, sem deixar sobrevivente
algum. Exterminou tudo o que respirava, conforme o Senhor, o Deus de
Israel, tinha ordenado” (Josué 10:40)
Contudo, logo nos primeiros
capítulos de Juízes vemos que as coisas não eram bem assim. O livro está cheio
de trechos como “deixaram de expulsar os jebuseus” (Jz
1:21), “não expulsaram
os cananeus que viviam em Gezer” (v. 29), “não
expulsaram os cananeus que viviam em Quitrom e em Naalol” (v. 30), “não expulsaram os que viviam em Aco, Sidom, Alabe,
Aczibe, Helba, Afeque e Reobe” (v. 31), “não
expulsaram os que viviam em Bete-Semes e em Bete-Anate” (v. 33) e “não expulsaram o povo de
Bete-Seã nem o de Taanaque nem o de
Dor nem o de Ibleã nem o de Megido, nem
tampouco o dos povoados ao redor dessas cidades, pois os cananeus estavam
decididos a permanecer naquela terra” (v. 27), dando-nos um panorama bem
mais realista do que o retratado hiperbolicamente em Josué. O texto até mesmo
reconhece que eles viviam com os israelitas “até o
dia de hoje” (v. 21).
O próprio Josué, que disse que
toda a terra havia sido conquistada (Js 11:23, 10:40), reconheceu no final do
livro que as nações cananeias ainda continuavam presentes no território e que
se os israelitas não fossem fieis a Deus, elas não seriam expulsas:
“Se,
todavia, vocês se afastarem e se aliarem aos sobreviventes dessas nações que
restam no meio de vocês, e se casarem com eles e se associarem com eles, estejam
certos de que o Senhor, o seu Deus, já não expulsará essas nações de diante
de vocês. Ao contrário, elas se tornarão armadilhas e laços para vocês,
chicote em suas costas e espinhos em seus olhos, até que vocês desapareçam
desta boa terra que o Senhor, o seu Deus, deu a vocês” (Josué 23:12-13)
Diante disso, Copan conclui que “as palavras abrangentes ‘todos’, ‘jovens e velhos’ e ‘homens
e mulheres’ eram expressões comuns para a totalidade, mesmo que mulheres e
crianças não estivessem presentes”.
Tome como exemplo o texto que diz que “ouvi todas
as criaturas existentes no céu, na terra, debaixo da terra e no mar, e tudo
o que neles há, que diziam: ‘Àquele que está assentado no
trono e ao Cordeiro sejam o louvor, a honra, a glória e o poder, para todo o
sempre!’” (Ap
5:13), e isso tudo em plena grande tribulação, quando a vasta maioria da
população na terra é ímpia e adoradora da besta.
Para usar um exemplo do Antigo
Testamento, o salmista escreve:
“Louvem
o Senhor, vocês que estão na terra, serpentes marinhas e todas as profundezas,
relâmpagos e granizo, neve e neblina, vendavais que cumprem o que ele
determina, todas as montanhas e colinas, árvores frutíferas e todos os cedros,
todos os animais selvagens e os rebanhos domésticos, todos os demais seres
vivos e as aves, reis da terra e todas as nações, todos os governantes e juízes
da terra, moços e moças, velhos e crianças” (Salmos 148:7-12)
Até mesmo coisas impessoais,
como a neve e a neblina, são instadas a louvar ao Senhor, em mais um exemplo de
hipérbole. E que crianças também são citadas em contextos hiperbólicos onde
elas de fato não estavam presentes, isso é notório na história dos dois anjos
que visitaram Ló:
“Ainda
não tinham ido deitar-se, quando todos os homens de toda parte da cidade de
Sodoma, dos mais jovens aos mais velhos, cercaram a casa. Chamaram Ló e
lhe disseram: ‘Onde estão os homens que vieram à sua casa esta noite? Traga-os
para nós aqui fora para que tenhamos relações com eles’” (Gênesis 19:4-5)
Onde a NVI traduz por «dos mais jovens
aos mais velhos», o hebraico traz o substantivo naar, que rotineiramente
significa menino ou criança. Essa é a mesma palavra presente em textos como:
• “Deus
ouviu o choro do menino (naar), e o anjo de Deus, do céu, chamou Hagar e lhe disse...” (Gn 21:17)
• “Quando
Eliseu chegou à casa, lá estava o menino (naar), morto, estendido na cama” (2Rs 4:32)
•
“Instrua a criança (naar) segundo os objetivos que você tem para ela, e mesmo com o
passar dos anos não se desviará deles” (Pv
22:6)
• “Pois
antes que o menino (naar) saiba dizer ‘papai’ ou ‘mamãe’, a riqueza de Damasco e os
bens de Samaria serão levados pelo rei da Assíria” (Is 8:4)
Será que realmente crianças
pequenas cercaram a casa de Ló para estuprar os dois homens que lá estavam? Se
tomarmos o texto ao pé da letra, seria essa a conclusão inevitável, uma vez que
ele fala de “todos os homens de toda
parte da cidade de Sodoma, dos mais jovens aos mais velhos” (Gn
19:4). Mas a própria narrativa do livro nos mostra que nem todos da cidade
estavam cercando a casa (que deveria ser do tamanho da mansão da Ana Hickmann
pra caber todo mundo), porque pelo menos os genros de Ló não estavam:
“Os
dois homens perguntaram a Ló: ‘Você tem mais alguém na cidade – genros, filhos
ou filhas, ou qualquer outro parente? Tire-os daqui, porque estamos para
destruir este lugar. As acusações feitas ao Senhor contra este povo são tantas
que ele nos enviou para destruir a cidade’. Então Ló foi falar com seus genros,
os quais iam casar-se com suas filhas, e lhes disse: ‘Saiam imediatamente deste
lugar, porque o Senhor está para destruir a cidade!’. Mas eles pensaram que ele
estava brincando” (Gênesis 19:12-14)
Embora os genros não tenham
acreditado nas palavras de Ló, eles não tinham cercado a casa, não tinham a
menor intenção de estuprar os anjos e podiam enxergar perfeitamente, diferente
dos homens que cercaram a casa e foram afligidos com cegueira por parte dos
anjos (v. 11). Assim, temos aqui pelo menos um caso claro que segue o padrão
dos textos que descrevem a matança de todo um povo, incluindo as crianças,
quando na verdade muito menos gente estava envolvida, e nenhuma criança.
O próprio Senhor Jesus citou
mulheres e filhos de maneira hiperbólica quando disse:
“Respondeu
Jesus: ‘Digo-lhes a verdade: Ninguém que tenha deixado casa, irmãos, irmãs,
mãe, pai, filhos, ou campos, por causa de mim e do evangelho, deixará de
receber cem vezes mais já no tempo presente casas, irmãos, irmãs, mães, filhos
e campos, e com eles perseguição; e, na era futura, a vida eterna’” (Marcos
10:29-30)
Em outro texto hiperbólico com
mulheres e crianças, Deus diz que “meu povo é
oprimido por uma criança, e mulheres dominam sobre ele” (Is 3:12), apesar de não ter havido qualquer
período histórico em que uma criança literalmente tenha “oprimido” os
israelitas, e a última vez que uma mulher havia governado a nação fazia
séculos. O salmista declara que “Tu ensinaste
crianças e bebês a anunciarem tua força; assim calaste teus inimigos” (Sl
8:2), embora evidentemente nenhum bebê tenha anunciado coisa alguma.
De forma semelhante, Jesus
disse:
“Mas
quando os chefes dos sacerdotes e os mestres da lei viram as coisas
maravilhosas que Jesus fazia e as crianças gritando no templo: ‘Hosana ao Filho
de Davi’, ficaram indignados, e lhe perguntaram: ‘Não estás ouvindo o que estas
crianças estão dizendo?’. Respondeu Jesus: ‘Sim, vocês nunca leram: ‘dos lábios
das crianças e dos recém-nascidos suscitaste louvor’” (Mateus
21:15-16)
Embora de fato houvessem
crianças ali gritando “Hosana ao Filho de Davi”, o texto também menciona
recém-nascidos, que não são capazes de falar coisa alguma. Assim, embora as
crianças neste caso específico fossem literais, os “recém-nascidos” ficam por
conta da hipérbole. O que todos esses exemplos nos mostram é que a hipérbole
era um recurso bastante conhecido e usado pelos judeus, e a simples menção a
crianças não necessariamente significa que elas estivessem presentes, se a
natureza do texto for hiperbólica.
Como Copan comenta, “alguns podem acusar Josué de ser enganador ou de estar
errado. De jeito nenhum. Ele estava falando a língua que todos em sua época
teriam entendido. Em vez de tentar enganar, Josué estava apenas dizendo que
havia derrotado muito bem o inimigo”.
Uma das maiores dificuldades na interpretação bíblica é entender que, apesar do
texto bíblico continuar verdadeiro para todas as gerações, ele não foi escrito
primariamente para a nossa época, mas para a deles. Assim, a tarefa de todo
intérprete é buscar entender a forma como um texto seria entendido pelos
leitores originais, e não como ele soa a nós hoje.
E quando entendemos o quão comum
era se expressar em termos universais de forma hiperbólica, especialmente
dentro do contexto de batalha, descobrimos que não há qualquer razão para
assumir que esses leitores originais entenderiam de outra maneira. Não só os
israelitas, mas os povos ao redor tinham o mesmo vício de linguagem relacionado
à retórica de guerra. Como observa Paul Copan,
a retórica de guerra
convencional de Josué era comum em muitos outros relatos militares do Antigo Oriente
Próximo no segundo e primeiro milênios a.C. A linguagem é tipicamente exagerada
e cheia de bravatas, retratando a devastação total. O leitor experiente do Antigo
Oriente Próximo reconheceu isso como uma hipérbole; os relatos não foram
considerados literalmente verdadeiros. Essa linguagem, observa o egiptólogo
Kenneth Kitchen, enganou muitos estudiosos do Antigo Testamento em suas
avaliações do livro de Josué; alguns concluíram que a linguagem da matança em
massa e da ocupação total – que não aconteceu – prova que esses relatos são
falsidades. Mas os antigos relatos do Oriente Próximo usavam prontamente “destruir
totalmente” ou outra linguagem de destruição, mesmo quando o evento não
aconteceu literalmente dessa forma.
Em seguida, Kitchen lista vários
exemplos da linguagem hiperbólica de destruição no mundo antigo, entre eles:
• Tutmosis III do Egito, no século XV
a.C (mesma época da escrita do Pentateuco) se gabava de que «o numeroso
exército de Mitanni foi derrubado em uma hora, totalmente aniquilado, como
aqueles (agora) inexistentes». No entanto, as forças de Mitanni continuaram
existindo de forma próspera após o embate com Tutmosis III, tanto que seu
sucessor Tutmosis IV formou uma coalizão com eles contra os hititas na Anatólia.
• Ramsés II fala das vitórias nada
espetaculares do Egito na Síria (por volta de 1274 a.C). No entanto, ele
anuncia que matou «toda a força» dos hititas, incluindo «todos os chefes de
todo o país».
• Na Estela de Merneptah (cerca de 1230
a.C), o filho de Ramsés II, Merneptah, anunciou que «Israel foi aniquilado, sua
semente não mais existe», outra declaração prematura.
• Na Estela de Mesha, o rei de Moabe do
século IX a.C se gabava de que «Israel desapareceu por completo e para sempre»,
embora saibamos que isso estava longe de ser uma verdade literal.
• O rei assírio Senaqueribe (701-681 a.C)
usou uma hipérbole semelhante quando disse que «os soldados de Hirimme,
inimigos perigosos, eu abati com a espada, e nenhum escapou»
.
Diante desses exemplos, Rodrigo
Silva questiona:
Por que não supor que a
Bíblia também contenha expressões de linguagem semelhante a outros textos
produzidos na Antiguidade? A meu ver se há algo em xeque aqui não é a
inspiração divina, mas o modo como alguns a entendem. Eu, particularmente, não
creio que Deus ditou sua palavra aos profetas de uma maneira verbal usando uma
fraseologia celeste impecável e sem defeitos. Ele falou com sotaque humano. As
ideias, os insights, foram “soprados” por Deus à mente dos profetas, mas
a forma de transcrever tudo aquilo era perfeitamente humana e pessoal.
Nas próprias páginas do Antigo
Testamento vemos muitos exemplos indiscutíveis de linguagem hiperbólica de
extermínio, como ocorre por exemplo a respeito de Edom:
“Então
o Senhor levantou contra Salomão um adversário, o edomita Hadade, da linhagem
real de Edom. Anteriormente, quando Davi estava lutando contra Edom, Joabe, o
comandante do exército, que tinha ido para lá enterrar os mortos, exterminara
todos os homens de Edom. Joabe e todo o exército israelita permaneceram lá
seis meses, até matarem todos os edomitas. Mas Hadade, sendo ainda um
menino, fugiu para o Egito com alguns dos oficiais edomitas que tinham servido
a seu pai”
(1º Reis 11:14-17)
O texto duas vezes repete que
todos os homens de Edom foram mortos, mas depois diz que Hadade e «alguns
oficiais edomitas» conseguiram fugir. Isso ainda parece bem pouca coisa, muito
longe do que seria o bastante para que Edom se reerguesse como nação, muito
menos como força militar. No entanto, a história continua com esse mesmo Hadade
voltando à sua terra e fazendo guerra a Israel (vs. 18-22).
Você deve pensar que se Israel
tinha exterminado todos os (milhões de) homens de Edom alguns anos antes,
derrotar Hadade e um punhado de oficiais edomitas agora seria como tirar doce
da boca de uma criança, mas o texto diz que ele trouxe «muitos problemas» a
Salomão (v. 25), justamente o maior dos reis de Israel, onde a nação encontrou
o seu ápice (1Rs 4:20-25)!
Para piorar, apenas um século
após Salomão, “os edomitas rebelaram-se contra o
domínio de Judá” (2Rs 8:20), derrotaram
o rei Jeorão e o seu exército e “até hoje continua
independente de Judá” (v. 22). É evidente que um punhado de homens
sobreviventes não bastaria para Edom se reerguer dessa maneira em apenas cem
anos, o que reforça que a linguagem de extermínio de 1º Reis 11:14-17 é notoriamente
hiperbólica. Outro exemplo de “falso extermínio” é o da tribo de Benjamim, que
em certo momento se envolve em uma guerra contra as outras tribos de Israel e se
vê reduzida a apenas 600 homens:
“Naquele
dia vinte e cinco mil benjamitas que portavam espada morreram, todos eles
soldados valentes. Seiscentos homens, porém, viraram as costas e fugiram para o
deserto, para a rocha de Rimom, onde ficaram durante quatro meses. Os
israelitas voltaram a Benjamim e passaram todas as cidades à espada, matando
inclusive os animais e tudo o que encontraram nelas. E incendiaram todas as
cidades por onde passaram” (Juízes 20:46-48)
Além de dizer que os benjamitas
foram reduzidos de 125 mil para apenas 600 homens, o texto deixa subtendido que
as mulheres foram todas mortas, porque mataram até os animais e «tudo o que
encontraram» em suas cidades. Apesar desse massacre não ter sido ordenado por
Deus, temos boas razões para pensar que também se trata de linguagem
hiperbólica, porque em 2º Crônicas 17:17 a tribo de Benjamim consta com um poderoso
exército de nada a menos que 200 mil homens. E este nem era o total de soldados
da tribo, mas o total dos que seguiam Eliada em Jerusalém (o número também não
inclui os não-combatentes).
Embora entre um texto e outra
exista um lapso de aproximadamente um século e meio, só um verdadeiro milagre da
fertilidade levaria a patamares tão elevados em tão pouco tempo. Para efeitos
de comparação, este crescimento é mais de 16 vezes superior ao crescimento
populacional do Brasil nos últimos 150 anos,
e isso nem considera o fato de que a atual mortalidade infantil é muito menor e
a expectativa de vida é muito maior que a deles. Um pouco adiante vemos outro
povo israelita supostamente exterminado: o de Jabes-Gileade, onde crianças e
mulheres são expressamente mencionadas entre as vítimas. O texto diz:
“Então
perguntaram: ‘Qual das tribos de Israel deixou de reunir-se perante o Senhor em
Mispá?’. Descobriu-se então que ninguém de Jabes-Gileade tinha vindo ao
acampamento para a assembleia. Quando contaram o povo, verificaram que ninguém
do povo de Jabes-Gileade estava ali. Então a comunidade enviou doze mil homens
de guerra com instruções para irem a Jabes-Gileade e matarem à espada todos
os que viviam lá, inclusive mulheres e crianças. ‘É isto o que vocês deverão
fazer’, disseram, ‘matem todos os homens e todas as mulheres que não forem
virgens’. Entre o povo que vivia em Jabes-Gileade encontraram quatrocentas
moças virgens e as levaram para o acampamento de Siló, em Canaã. Depois a
comunidade toda enviou uma oferta de comunhão aos benjamitas que estavam na
rocha de Rimom. Os benjamitas voltaram naquela ocasião e receberam as mulheres
de Jabes-Gileade que tinham sido poupadas” (Juízes 21:8-14)
Embora este texto também não se
trate de uma ordenança divina, ele serve bem para ilustrar o ponto. O texto diz
que todos os habitantes da cidade foram mortos, incluindo mulheres e crianças.
Apenas quatrocentas moças foram poupadas, e mesmo assim elas passaram a viver
com os benjamitas e se casaram com eles (teoricamente, portanto, não sobrou
mais ninguém pra perpetuar a descendência de Jabes-Gileade). Isso aconteceu no
último capítulo de Juízes, mas onze capítulo adiante, no primeiro livro de
Samuel, apenas duas décadas mais tarde, os homens de Jabes-Gileade voltam a ser
mencionados habitando na cidade cercada e protegida (1Sm 11:1-3).
Outro texto que menciona um
“massacre” generalizado de mulheres e crianças e que é quase certamente uma
hipérbole está no livro de Ester, quando Hamã planeja «exterminar e aniquilar
completamente todos os judeus, jovens e idosos, mulheres e crianças, num único
dia», em uma linguagem difícil de ser mais universal e enfática:
“Assim,
no décimo terceiro dia do primeiro mês os secretários do rei foram convocados. Hamã
ordenou que escrevessem cartas na língua e na escrita de cada povo aos sátrapas
do rei, aos governadores das várias províncias e aos chefes de cada povo. Tudo
foi escrito em nome do rei Xerxes e selado com o seu anel. As cartas foram
enviadas por mensageiros a todas as províncias do império com a ordem de
exterminar e aniquilar completamente todos os judeus, jovens e idosos, mulheres
e crianças, num único dia, o décimo terceiro dia do décimo segundo mês, o mês
de adar, e de saquear os seus bens” (Ester 3:12-13)
Como sabemos, o tão prometido
massacre acabou não acontecendo, e o próprio Hamã é quem acabou indo para a
forca. Mas será mesmo que ele pretendia o genocídio sistemático de todos os
judeus, algo semelhante ao que os nazistas fizeram nos campos de concentração? É
extremamente improvável, dada a índole do império ao qual ele servia, o persa. Os
persas eram bastante conhecidos pela tolerância com os povos conquistados: eles
conquistavam tudo o que era possível, mas nunca matavam mulheres ou crianças.
Eles permitiam que os povos
conquistados mantivessem até mesmo sua religião, e apenas se limitavam a cobrar
um tributo sobre eles. O leitor mais atento deve se lembrar que foi o rei persa
Ciro quem permitiu que os judeus retornassem à sua terra e reconstruíssem
Jerusalém (Ed 1:1-3). Ele até mesmo diz que “o
Senhor, o Deus dos céus, deu-me todos os reinos da terra e designou-me para
construir um templo para ele em Jerusalém de Judá” (v. 2), como se
estivesse pessoalmente incumbido da missão de reconstruir o templo para os
judeus, e tudo isso em honra ao Senhor (mesmo que o próprio Ciro também
adorasse outros deuses).
Xerxes, o rei persa do livro de
Ester, não ficava por menos. Em sua conquista do Egito, ele permitiu que os
egípcios mantivessem sua religião e cultura e ainda construiu o Templo de
Amon-Rá, em Karnak. Nós simplesmente não temos informações de reis persas desse
período mandando exterminar populações inteiras de civis inocentes, incluindo
mulheres e crianças, e o próprio Xerxes jamais daria o seu selo imperial a uma
ordem de extermínio dessa natureza, que ia de encontro a toda a política persa
em relação aos povos conquistados. Sua grande missão era conquistar todos os
países do mundo para que todos vivessem em paz – algo utópico e nada modesto,
mas longe de fazer dele um genocida.
Seria impossível que o autor do
livro de Ester não soubesse disso, não só porque a tolerância persa era
bastante conhecida no mundo antigo, mas porque a própria Escritura – em livros
como Esdras e Neemias – fala clara e abertamente dessa tolerância. Portanto,
ele só podia estar usando uma hipérbole deliberada, ao maior estilo dos textos
de Deuteronômio e Josué, que qualquer leitor judeu entenderia (e saberia que
não havia nenhum genocídio envolvido).
Essa é provavelmente a melhor
evidência de que “mulheres e crianças” podem ser citadas em um contexto de
extermínio sem que o autor pretenda que se infira qualquer massacre dos mesmos.
Trata-se apenas do mesmo recurso de hipérbole de extermínio tão presente nas
páginas do Antigo Testamento para reforçar uma conquista completa, não um
genocídio de populações inocentes. Se não fosse a intervenção divina através da
figura de Ester, os judeus teriam sofrido um massacre, mas não de mulheres e crianças.
Seu poderio militar seria consideravelmente enfraquecido, e isso bastava para
descrever o pânico todo de forma hiperbólica.
Outro exemplo de hipérbole
relacionada ao extermínio se encontra na profecia de Ezequiel sobre o Egito:
“Assim
diz o Soberano Senhor: ‘Darei fim à população do Egito pelas mãos do rei
Nabucodonosor da Babilônia. Ele e o seu exército, a nação mais impiedosa, serão
levados para destruir a terra. Eles empunharão a espada contra o Egito e a
terra ficará cheia de mortos. Eu secarei os regatos do Nilo e venderei a terra
a homens maus; pela mão de estrangeiros deixarei arrasada a terra e tudo o que
nela há. Eu, o Senhor, falei’” (Ezequiel 30:10-12)
Embora o texto fale na
devastação da terra do Egito e de «tudo o que nela há», e que «darei fim
à população do Egito», Nabucodonosor esteve longe de dizimar toda a
população egípcia. O Antigo Egito continuou a existir como uma entidade
cultural e política durante e após o período de Nabucodonosor, mesmo que ele
tenha levado parte da população em cativeiro e derrotado seu exército. Assim,
quando o profeta diz que “nenhum pé de homem ou
pata de animal o atravessará; ninguém morará ali [no Egito] por quarenta anos” (Ez 29:11), isso deve naturalmente ser entendido
de forma hiperbólica, não literalmente.
Em outro texto hiperbólico, Deus
diz que “derramarei a minha ira sobre Pelúsio, a
fortaleza do Egito, e exterminarei com a população de Tebas” (Ez 30:15). Isso é dito a respeito do que
Nabucodonosor faria (v. 10), mas Tebas continua existindo até hoje (apesar de
ter mudado de nome por Alexandre o Grande, alguns séculos mais tarde). Os
próprios versos seguintes (vs. 17-18) falam de pessoas sendo levadas em cativeiro
(porque não morreriam). Mesmo assim, note a linguagem enfática e universal que
é dita a seu respeito: “Quando eu arrasar o Egito e arrancar
da terra tudo o que nela existe, quando eu abater todos os que ali
moram, então eles saberão que eu sou o Senhor” (Ez 32:15).
Onze versos depois, Meseque e
Tubal aparecem no Sheol (túmulo) “com toda a
sua população” (v. 26), como se todos tivessem morrido à espada, embora
grande parte tenha sobrevivido. É ali que o texto poeticamente diz que “o faraó e todo o seu exército, os verá e será
consolado da perda de todo o seu povo que foi morto à espada, palavra do
Soberano Senhor. Embora eu o tenha feito espalhar pavor na terra dos viventes,
o faraó e todo o seu povo jazerão entre os incircuncisos, com os que
foram mortos pela espada, palavra do Soberano Senhor” (vs. 31-32).
Além da população, Deus diz que
destruiria “todo o seu rebanho” (v.
13), e que deixaria que “todas as aves do
céu se abriguem em você e os animais de toda a terra hão de
empanturrar-se de você” (v. 4).
Não é preciso dizer como isso nunca se cumpriu literalmente, o que certamente
não era a intenção do autor. Esses e muitos outros exemplos nos mostram como a
linguagem hiperbólica era comum nas guerras, onde a vitória de um povo sobre o
outro era exaltada em termos universais e enfáticos, que ninguém pretendia que
fossem entendidos literalmente.
• Expulsar ou exterminar?
Se a linguagem do extermínio é
hiperbólica, qual seria o seu equivalente literal? Em outras palavras, o que os
autores do Antigo Testamento pretendiam que fosse entendido por detrás da
linguagem hiperbólica de extermínio? Se eu digo que “estou morrendo de rir”, a
ideia não é que alguém tem que chamar o pronto socorro antes que eu faleça no
ato, mas simplesmente que eu estou rindo muito. Ou então, se eu digo que vou
“matar a aula hoje”, a ideia não é que eu esteja com instintos assassinos, mas
simplesmente que pretendo faltar na aula. Seguindo essa linha de raciocínio, o
que os autores do Pentateuco e de Josué pretendiam nos informar com a linguagem
do extermínio de “homens, mulheres e crianças”?
Os próprios textos bíblicos nos
dão a resposta, quando usam um verbo alternativo que transmite um sentido bem
diferente e mais literal, que se harmoniza muito melhor com o contexto mais
amplo: expulsar. O hebraico garash, que significa «lançar fora,
expulsar, atirar fora, mandar embora»,
é rotineiramente usado pelos escritores bíblicos para descrever o que aconteceu
com os cananeus, em lugar de charam ou de qualquer outro verbo traduzido
por “matar”, “destruir” ou “exterminar”.
Trata-se da mesma palavra usada
para a expulsão (garash) de Adão e Eva do jardim (Gn 3:24), para a
expulsão (garash) de Caim da terra em que vivia (Gn 4:14) e para a
expulsão (garash) de Hagar para o deserto (Gn 21:10). Naturalmente,
todos esses continuaram vivos, assim como todos os outros exemplos que
poderíamos coletar de garash no Antigo Testamento. Embora alguém possa
alegar que a expulsão-garash que os textos se referem quando dizem
respeito aos cananeus é um mero eufemismo para falar de extermínio, isso
simplesmente não encontra paralelo na Bíblia hebraica.
Os antigos judeus usavam garash
no mesmo sentido literal que usamos o verbo “expulsar” (diferente de outros
verbos, como «conhecer-yada», que podia ser entendido tanto como
conhecer no sentido literal quanto como um eufemismo para a relação sexual,
como em Gn 4:1). Garash, ao contrário, não aparenta carregar qualquer
duplo sentido, o que aponta para uma expulsão literal, não um eufemismo para a
morte. Vários textos corroboram para esse entendimento, como esse aqui:
“Mandarei
adiante de vocês o meu terror, que porá em confusão todas as nações que vocês
encontrarem. Farei que todos os seus inimigos virem as costas e fujam.
Causarei pânico entre os heveus, os cananeus e os hititas para expulsá-los de
diante de vocês” (Êxodo 23:27-28)
Note que a ideia nunca foi
cercar uma região civil, invadir e massacrar tudo e todos, mas expulsar os
inimigos de modo que eles virassem as costas e fugissem. Obviamente,
alguém que vira as costas e foge é alguém que continua vivo, e em parte nenhuma
da Bíblia Deus manda os israelitas os perseguirem até matar o último homem. O
objetivo nunca foi matar pessoas, mas tomar o território. Obviamente, neste
processo existem guerras e em guerras pessoas morrem, mas quem era enviado à
guerra não eram mulheres e crianças. As mulheres e crianças eram justamente os
que viravam as costas e fugiam depois que o exército era derrotado, e, nunca é
tarde repetir, Deus nunca mandou ir atrás deles.
Mesmo os textos que falam de
forma hiperbólica no extermínio de “mulheres e crianças” falam do “extermínio” naquela
região, não de uma perseguição levada à cabo em regiões mais distantes. Os
fugitivos (mulheres e crianças, em sua maioria) nunca eram o alvo; o alvo eram os
combatentes que ficassem para defender o território.
Na verdade, os primeiros livros
que descrevem a conquista de Canaã nem mesmo falam de “extermínio”. A primeira
vez que a linguagem de “matar homens, mulheres e crianças” aparece é em
Deuteronômio, o último dos livros do Pentateuco, seguido por Josué, o primeiro
dos históricos, o que indica que este era um vício de linguagem próprios destes
livros. Antes disso (ou seja, em Êxodo, Levítico e Números), a conquista é tratada
sempre como uma “expulsão”, nunca como um “extermínio”:
“Não
os expulsarei num só ano, pois a terra se tornaria desolada e os animais
selvagens se multiplicariam, ameaçando vocês. Eu os expulsarei aos
poucos, até que vocês sejam numerosos o suficiente para tomar posse da terra.
Estabelecerei as suas fronteiras desde o mar Vermelho até o mar dos filisteus,
e desde o deserto até o Rio. Entregarei em suas mãos os povos que vivem na
terra, aos quais expulsarão de diante de vocês. Não façam aliança com
eles nem com os seus deuses. Não deixem que esses povos morem na terra de
vocês, senão eles os levarão a pecar contra mim, porque prestar culto aos
deuses deles será uma armadilha para vocês” (Êxodo 23:29-33)
Observe que o texto até mesmo
justifica por que os cananeus não seriam expulsos de uma vez só, «pois a terra
se tornaria desolada e os animais selvagens se multiplicariam». Se o texto
estivesse falando de um extermínio, a terra seria ocupada assim que os
israelitas massacrassem cada povo cananeu, mas o texto diz que a terra ficaria «desolada»,
o que mostra que está realmente falando de cananeus abandonando deliberadamente
o território e deixando-o vazio antes que qualquer israelita pisasse os pés
ali.
Note também a parte que fala
sobre não fazer «aliança com eles nem com os seus deuses», o que não faria
nenhum sentido se a ordem fosse de assassinar todos. Como alguém poderia fazer
aliança com as pessoas que já matou? É evidente que o texto pressupõe que os
cananeus não seriam exterminados, mas meramente expulsos, razão por que ainda
seria possível que futuramente os israelitas se aliassem a eles em alguma
guerra. Todo o propósito consistia não em matar tudo e todos, mas em separar-se
dos cananeus, expulsando-os da terra e mantendo distância deles. Observe como
Levítico e Números seguem o mesmo padrão:
“Não
sigam os costumes dos povos que vou expulsar de diante de vocês. Por
terem feito todas essas coisas, causam-me repugnância” (Levítico 20:23)
“Diga
aos israelitas: Quando vocês atravessarem o Jordão para entrar em Canaã, expulsem
da frente de vocês todos os habitantes da terra. Destruam todas as imagens
esculpidas e todos os ídolos fundidos, e derrubem todos os altares idólatras
deles. Apoderem-se da terra e instalem-se nela, pois eu lhes dei a terra para
que dela tomem posse” (Números 33:51-53)
Mesmo em Deuteronômio, o único
livro do Pentateuco que se diferencia dos demais por mencionar o suposto “extermínio”,
ainda é conservada a ideia de expulsão da terra:
“Se
vocês obedecerem cuidadosamente todo o mandamento que lhes mando cumprir,
amando o Senhor, o seu Deus, andando em todos os seus caminhos e apegando-se a
ele, então o Senhor expulsará todas essas nações da presença de vocês, e
vocês despojarão nações maiores e mais fortes do que vocês. Todo lugar onde
vocês puserem os pés será de vocês. O seu território se estenderá do deserto do
Líbano e do rio Eufrates ao mar Ocidental” (Deuteronômio 11:22-24)
“Façam
o que é justo e bom perante o Senhor, para que tudo lhes vá bem e vocês entrem
e tomem posse da boa terra que o Senhor prometeu, sob juramento, a seus
antepassados, expulsando todos os seus inimigos de diante de vocês,
conforme o Senhor prometeu” (Deuteronômio 6:18-19)
Isso mostra que o autor de
Deuteronômio, embora persistente no uso da hipérbole de extermínio, estava
ciente de que a coisa realmente se tratava de expulsão, não de genocídio. Vale
lembrar que Deuteronômio é o único livro do Pentateuco que menciona a morte de
Moisés (Dt 34:1-6), o que significa que pelo menos parte dele não foi escrito
pelo próprio, mas sofreu revisão de outros autores (enquanto Êxodo, Levítico e
Números pertencem integralmente a Moisés, que era bem menos apegado à linguagem
hiperbólica de destruição, em contraste com os autores de Deuteronômio e
Josué).
Mesmo se considerarmos todos os
textos de Deuteronômio e Josué que falam em “exterminar” os cananeus, ainda
assim “as referências à expulsão são
consideravelmente mais numerosas do que as de destruição e aniquilação”,
o que mostra que os escritores bíblicos foram antes de tudo literais, e somente
secundariamente empregavam a hipérbole como recurso literário. A síntese de
tudo isso é o que Paul Copan corretamente resume:
Em suma, os cananeus em fuga
escapariam; apenas os resistentes corriam risco. Este breve exame dos termos
ligados às guerras de Yahweh fornece mais uma indicação de que a aniquilação
total não foi intencionada e que a fuga da terra foi incentivada. Como, então,
essa desapropriação ou expulsão funciona? Não é difícil imaginar. A ameaça de
um exército estrangeiro levaria mulheres e crianças – para não falar da
população em geral – a se protegerem do perigo. Os não-combatentes seriam os
primeiros a fugir. Como escreve John Goldingay, uma população atacada não
ficaria apenas esperando para ser morta. Só os defensores, que não saem, são os
que morrem.
Em apoio a essa conclusão, ele
cita Jeremias 4:29, que diz que “ao som do
cavaleiro e do arqueiro toda a cidade foge; eles entram nos matagais e
escalam entre as rochas; cada cidade foi abandonada, e ninguém mora nelas”,
em perfeita consonância com o sentido dos textos que falam das guerras com os
cananeus e da expulsão dos mesmos. Nenhum civil ficaria numa cidade para ver o
que aconteceria depois que suas fortalezas militares fossem destruídas e os
soldados não fossem mais capazes de protegê-los. Era assim no passado, e é
assim até hoje.
Se algum general sanguinário
estivesse interessado em fazer um genocídio de mulheres e crianças teria que
persegui-los, mas, como vimos, não houve ordem alguma a este respeito, muito
menos um relato de Josué ou seus soldados correndo atrás de mulheres e crianças
para transpassá-los à espada. Só o que vemos é a destruição das próprias
cidades, muitas das quais eram na verdade fortificações militares, não povoados
ou vilarejos. É isso o que veremos a partir de agora.
• Povoados ou fortificações
militares?
Você já se perguntou por que os
espias israelitas, assim que foram enviados à cidade de Jericó, “entraram na casa de uma prostituta chamada Raabe, e ali
passaram a noite” (Js 2:1)? Será que eles se desviaram tão rápido da sua
missão e foram se entregar aos prazeres da carne? Não é o que o texto informa,
o qual não transmite nada de caráter sexual. Rodrigo Silva explica que o
hebraico zanah, traduzido nas nossas Bíblias como “prostituta”, também
podia se referir a uma dona de estalagem, e que esse era o entendimento do
historiador judeu Flávio Josefo (37-100 d.C) e de algumas versões aramaicas do
texto.
Isso não significa que Raabe não
pudesse ser uma prostituta, porque às vezes essas estalagens ou tabernas eram
administradas por elas.
Mas certamente ela não dirigia um bordel, como popularmente se pensa. O que
lança luz a isso é uma lei do Código de Hamurabi, que diz que “se conspiradores tramarem juntos dentro da casa de uma
dona de pensão, e ela não os denunciar e trouxer para o palácio, que seja
condenada à morte”.
Copan acrescenta:
As caravanas em viagem e os
mensageiros reais costumavam pernoitar nesses locais durante este período.
(...) Além disso, essas missões de reconhecimento eram comuns no Oriente. Uma
casa de estalagem teria sido um local de encontro ideal para espiões e
conspiradores. Esses lugares representavam notoriamente uma ameaça à segurança;
por causa disso, os hititas (na Turquia e no norte da Síria) proibiram a
construção de uma pousada ou taberna perto das muralhas da fortaleza.
Por que isso é importante?
Porque o caso de Raabe é um dos mais aclamados por quem acredita que os
israelitas cercavam povoados cheios de civis e matavam mulheres e outros
não-combatentes. Isso porque não faria sentido os espias jurarem que poupariam
Raabe e sua família (Js 2:12-21) se os israelitas já costumassem poupar os
civis. O que a evidência arqueológica nos aponta, entretanto, é que Jericó não
era uma cidade no sentido próprio que entendemos hoje, mas uma guarnição
militar egípcia. Rodrigo Silva escreve:
Evidências materiais indicam
que, nesta última fase de ocupação, Jericó provavelmente não funcionava mais
como um grande centro urbano, mas como um posto militar avançado. Sua posição
estratégica, justamente com a estrutura arquitetônica dos edifícios encontrados
no lado oriental do assentamento, foi interpretada por alguns como parte de uma
pequena guarnição egípcia local. A evidência disso são os escaravelhos de pedra
encontrados perto das tumbas que datam dos tempos de Tutmés III, Hatshepsut e
Amonfis – faraós possivelmente ligados à história de Moisés e os eventos
narrados da saída de Israel do Egito.
Ele então prossegue com mais
argumentos que corroboram que Jericó era de fato um posto avançado egípcio e
não uma cidade cheia de mulheres e crianças, mas não é necessário cansar o
leitor com todas as evidências. Basta pensar um pouco: você acha mesmo que alguém
seria capaz de dar a volta (a pé) na sua cidade em um único dia? Pois Josué e
seus soldados marcharam sete vezes em torno de Jericó num único
dia (Js 6:15), e fizeram isso com todo o povo (v. 7), carregando a arca e tudo (v.
4), enquanto tocavam trombetas (v. 8)!
É evidente que eles conseguiram
fazer isso não porque foram atingidos pelo raio do Flash, mas porque Jericó era
um posto avançado relativamente pequeno, povoado basicamente apenas por
militares. Raabe e sua família eram a exceção, visto que alguém precisava
administrar a taberna, que deixavam a cargo de um civil. Logicamente, na
confusão da batalha, quando os muros de Jericó caíssem, seria difícil
distinguir combatentes de não-combatentes, o que colocaria a vida de Raabe e
sua família em risco se não fosse a sinalização específica pedida pelos espias
para identificá-los e poupar sua vida (Js 2:17-18).
Copan explica que
o leitor comum não vai
perceber o fato de que essa linguagem estereotipada do Antigo Oriente Próximo
na verdade descreve ataques a fortes militares ou guarnições, e não a
populações em geral que incluíam mulheres e crianças. Não há evidências
arqueológicas de populações civis em Jericó ou Ai. Dado o que sabemos sobre a
vida cananeia na Idade do Bronze, Jericó e Ai eram fortalezas militares.
Ele conclui que “todas as evidências arqueológicas indicam que nenhuma
população civil existia em Jericó, Ai e outras cidades mencionadas em Josué”.
A população civil «vivia nas redondezas»,
o que é evidenciado por correspondências entre faraós egípcios e líderes em
Canaã no século XIV a.C, que “revelam que as
cidades ou fortalezas como Jerusalém e Siquém eram distintas de seus centros
populacionais”. Richard Hess,
professor de Antigo Testamento e de línguas semíticas, também ressalta a distância
geográfica entre essas fortificações militares e as cidades onde a população
vivia, o que dava tempo para essa população fugir quando as fortalezas caíssem:
É
possível que após a derrota do exército, as populações tivessem fugido em vez
de permanecerem numa cidade relativamente indefesa. Além disso, sabe-se que
muitas destas “cidades” eram usadas principalmente para edifícios
governamentais, de modo que as pessoas comuns viviam na zona rural circundante.
Portanto, pode-se perguntar se havia uma população remanescente nessas cidades
para ser destruída. Não há indicação no texto de quaisquer não-combatentes
específicos condenados à morte (ao contrário dos exércitos e dos seus líderes).
De qualquer forma, há evidências claras de que ainda restavam cananeus nas
áreas onde Israel se estabeleceu (Jz 2:10-13).
Em outras palavras, todas essas
ocasiões em que Josué aparece matando geral se passam em fortificações
militares, onde se esperava encontrar apenas homens de guerra, daí a linguagem forte
de extermínio (acentuada pela hipérbole de universalismo, que incluía “mulheres
e crianças” mesmo que não estivessem realmente presentes).
O próprio nome “Ai”, da cidade
onde Josué teria matado “doze mil homens e
mulheres” (Js 8:25) significava “ruína”, o que “sugere
a reutilização de fortificações anteriores para um forte temporário em vez de
um local de habitação mais permanente”.
As escavações arqueológicas em Jericó, por sua vez, não encontraram nenhum
artefato ou cerâmica de prestígio que indicasse riqueza ou status social, “como seria de se esperar em centros populacionais em
geral”,
o que confirma a ideia de que Jericó era um centro militar com “provavelmente cem ou menos soldados”.
Essa constatação é fortalecida
pelo uso do termo melek (“rei”), presente tanto no relato da conquista
de Jericó (Js 2:3) quanto de Ai (Js 8:2). Embora os relatos falem no “rei de
Jericó” e no “rei de Ai”, os cananeus não tinham reis propriamente ditos, como
nas monarquias da época. Em vez disso, o que eles chamavam de “reis” designava
na verdade um “líder militar que era responsável
por um governante superior externo”.
Em outras palavras, eles tinham um “rei” (melek) militar responsável
pela zona militar, e outro governante responsável pela zona civil, que nunca é
mencionado nas narrativas de Josué (que se focam nos chefes militares).
Um detalhe não expressamente
presente nas Escrituras, mas preservado pela tradição judaica, é que os
israelitas eram proibidos de cercar uma cidade completamente, justamente para
que os civis que houvessem lá dentro pudessem fugir e preservar suas vidas. De
acordo com o célebre teólogo judeu Maimônides (1138-1204), uma das figuras mais
importantes da história do Judaísmo, “quando uma
cidade é cercada para ser conquistada, ela não deve ser cercada nos quatro
lados, apenas em três. Deve ser deixado um lugar para os habitantes fugirem e
para todos aqueles que desejem escapar com vida”.
Essa tradição também é
preservada pelo rabino Ramban (1194-1270), que escreveu:
Recebemos a ordem de que,
quando sitiarmos uma cidade, deixemos um lado sem cerco, para que, se [os
habitantes] desejarem fugir, tenham uma rota de fuga. Pois dessa forma
aprenderemos a comportar-nos com compaixão, mesmo para com o nosso inimigo
durante a guerra. Há também outra vantagem: permitimos-lhes uma rota de fuga, e
assim eles não sairão com força contra nós.
Note que apesar dele também
apresentar uma razão estratégica para não cercar a cidade completamente (pois
isso obrigaria todos lá dentro a lutarem, por não terem outra opção), a
principal razão elencada é de natureza moral, por «comportar-nos com compaixão,
mesmo para com o nosso inimigo durante a guerra».
Isso também ajuda a explicar por
que Raabe precisou ser salva, mas nenhuma outra missão de salvamento aparece na
conquista das demais cidades (ou fortificações militares). Jericó foi a única
que o texto bíblico diz que foi cercada completamente. Em momento nenhum somos
informados que as outras cidades foram cercadas nos quatro cantos, como ocorreu
com Jericó. É por isso que os civis ali (Raquel e sua família) precisavam de um
salvamento, algo que Deus providenciou de antemão ao permitir que a única
cidade a ser cercada completamente fosse também a única onde uma família é
salva por livramento especial.
Outro aspecto que Maimônides
destaca é que “não devemos cortar árvores
frutíferas fora de uma cidade nem impedir que uma vala de irrigação lhes traga
água para que sequem”,
baseado na proibição de Deuteronômio 20:19. Novamente, o rabino Ramban segue de
perto este enunciado quando diz que “por esta
proibição estamos proibidos de destruir árvores frutíferas durante um cerco, a
fim de causar angústia e sofrimento aos habitantes da cidade sitiada. Está
contido em Suas palavras: ‘Não destruirás as suas árvores’”.
Note como eles sempre falavam no presente, porque os judeus medievais
continuavam preservando a ética de guerra dos tempos da Torá.
Maimônides vai até além, e
sustenta que
esta
proibição não se aplica apenas às árvores. Em vez disso, qualquer pessoa que
quebre utensílios, rasgue roupas, destrua edifícios, bloqueie uma fonte ou
estrague alimentos com intenção destrutiva transgride a ordem “não destrua”. Do
contrário, ele recebe chicotadas pelas condutas rebeldes, instituídas pelos
Sábios.
Mesmo a ordem de matar não se
tratava de uma ordem propriamente dita, mas de uma autorização. Um dos pontos
destacados por Rodrigo Silva é o modo verbal usado nos textos que “ordenam” a
destruição das cidades cananeias. No hebraico, o imperativo é frequentemente
usado num sentido permissivo, e não como uma ordem, como no português. Por
exemplo, quando Êxodo 1:17 diz que as parteiras «fizeram viver os meninos», o
sentido não é que elas deram vida a eles, mas simplesmente que os deixaram
viver.
Da mesma forma, quando Deus diz
que “de toda árvore do jardim, comendo comerás” (Gn
2:16, numa tradução literal), Ele não estava exigindo que Adão e Eva comessem
os frutos de todas as árvores, mas dando-lhes permissão para isso. Joe
Sprinkle, professor de hebraico do Hebrew Union College, argumenta que “paralelos gramaticais idênticos ou semelhantes permitem
entender algumas ordens divinas como ação permissiva do verbo (modo
imperfeito)”, e que o correto
entendimento de textos como Deuteronômio 20:12-13 seria:
“Agora,
se ela [a cidade] não estiver disposta a ter paz com vocês, mas em vez disso
fizer guerra, então vocês têm permissão para sitiá-la. Então, YHWH seu Deus
deixará em sua mão, e você tem permissão para matar qualquer um de seus homens
ao fio da espada [os não-combatentes seriam poupados]”
Finalmente, e talvez o mais
relevante disso tudo, é que “a evidência
arqueológica apoia bem o texto bíblico; ambos apontam para a destruição
material mínima observável em Canaã, bem como a infiltração gradual de Israel,
assimilação e eventual domínio lá”.
Apenas três cidades (que na verdade eram fortalezas, como vimos) foram
queimadas: Jericó, Ai e Hazor (Js 6:24, 8:28, 11:13). Os arqueólogos
constataram que “todos os aspectos tangíveis da
cultura dos cananeus – edifícios e casas –
permaneceram bastante intactos”.
Isso também é corroborado por textos bíblicos, como o que diz:
“O
Senhor, o seu Deus, os conduzirá à terra que jurou aos seus antepassados,
Abraão, Isaque e Jacó, que daria a vocês, terra com grandes e boas cidades que
vocês não construíram, com casas cheias de tudo que há de melhor, de coisas que
vocês não produziram, com cisternas que vocês não cavaram, com vinhas e
oliveiras que não plantaram. Quando isso acontecer, e vocês comerem e ficarem
satisfeitos, tenham cuidado! Não esqueçam o Senhor que os tirou do Egito, da
terra da escravidão” (Deuteronômio 6:10-12)
Que sentido faria Deus dizer que
a terra possuía «casas cheias de tudo que há de melhor» se os israelitas teriam
que derrubá-las todas, ou «vinhas e oliveiras que não plantaram» se seriam
todas destruídas? Isso seria o mesmo que eu o convidasse para vir morar em Dubai,
porque tem tudo do bom e do melhor, mas depois acrescentasse que quando você
chegasse lá encontraria a cidade toda destruída por terremotos de 9 graus na
escala Richter e tudo o que lá existe estaria em ruínas. O quão motivado você
se sentiria com um convite desses? Talvez o mesmo que os israelitas, se
soubessem que teriam que destruir e queimar toda essa “terra que mana leite e
mel”.
O próprio texto deixa subtendido
que isso não aconteceria, quando diz que “quando
isso acontecer, e vocês comerem e ficarem satisfeitos, tenham cuidado” (v.
11). Comerem o que? As “vinhas e oliveiras que
vocês não plantaram” (v. 11), que Deus havia acabado de se referir.
Portanto, essa não era uma propaganda divina enganosa: os israelitas realmente
desfrutariam dos bens materiais existentes em Canaã. As “cidades” que eles
queimavam e destruíam tudo não eram essas que o texto se refere, onde o povo
vivia e construía casas, cisternas e vinhas, mas as fortalezas militares às
quais já nos referimos.
• A análise comparativa de
textos
Um dos princípios mais
elementares da boa exegese bíblica é que “a Bíblia explica a Bíblia”. Isso quer
dizer que se estamos com dúvidas a respeito de algum versículo, uma das
melhores formas de entendê-lo é comparando com o que o restante da Bíblia
ensina sobre aquele assunto. Isso porque, diferente do que pensam os ateus e
teólogos liberais, a Bíblia não é uma colcha de retalhos cheia de versículos
isolados que contradizem uns aos outros, mas um todo harmônico onde uma parte
lança luz à outra – por assim dizer, é como um quebra-cabeças, onde todas as
peças se encaixam perfeitamente.
Já fizemos algo parecido com o
texto do “genocídio” amalequita de 1º Samuel 15, quando descobrimos que os
textos paralelos deixam claro que não houve genocídio algum, e que detalhes
dentro da própria perícope indicam o mesmo. É por isso que é tão importante estudar
o contexto – tanto o contexto da perícope em si quanto o contexto maior dos
outros textos da Escritura – antes de tirarmos conclusões precipitadas. Se isso
é verdade em relação a 1º Samuel 15, também deve ser verdadeiro a respeito dos
demais textos que mencionam populações inteiras “exterminadas ao fio da
espada”.
Podemos começar com o
“extermínio” dos enaquins (gigantes). Josué diz que “nenhum
enaquim foi deixado vivo no território israelita; somente em Gaza, em Gate e em
Asdode é que alguns sobreviveram” (Js 11:22), e que ele “exterminou os enaquins dos montes de Hebrom, de Debir e
de Anabe, de todos os montes de Judá, e de Israel. Josué destruiu-os
totalmente, e também as suas cidades” (v. 21). Os textos são claros:
nenhum enaquim havia restado vivo em Hebrom, foram «totalmente destruídos» dali
e de «todos os montes de Judá e de Israel». A completa destruição de Hebrom é
narrada no capítulo anterior, onde lemos:
“Então
Josué, e todo o Israel com ele, foi de Eglom para Hebrom e a atacou. Tomaram a
cidade e a feriram à espada, como também o seu rei, os seus povoados e todos
os que nela viviam, sem deixar sobrevivente algum. Destruíram totalmente a
cidade e todos os que nela viviam, como tinham feito com Eglom” (Josué
10:36-37)
“Destruíram totalmente”, “todos
os que nela viviam”, “sem deixar sobrevivente algum”... podemos dizer que este
foi o trágico fim dos enaquins, certo? Não tão cedo. Alguns anos depois, Calebe
pediu permissão para expulsar os enaquins de Hebrom:
“Conforme
a ordem dada pelo Senhor, Josué deu a Calebe, filho de Jefoné, uma porção de
terra em Judá, que foi Quiriate-Arba, isto é, Hebrom. Arba era antepassado de
Enaque. Calebe expulsou de Hebrom os três enaquins: Sesai, Aimã e Talmai,
descendentes de Enaque” (Josué 15:13-14)
Primeiro Hebrom aparece
completamente destruída e sem nenhum sobrevivente, como se a terra já tivesse
sido completamente ocupada, e pouco depois vemos que os enaquins ainda estavam
lá, e que Calebe precisava ir à guerra para tomar posse da terra. Ou então tome
como exemplo Hazor, cuja linguagem de destruição não podia ser mais completa:
“Na
mesma ocasião Josué voltou, conquistou Hazor e matou o seu rei à espada (Hazor
tinha sido a capital de todos esses reinos). Matou à espada todos os que nela
estavam. Exterminou-os totalmente, sem poupar nada que respirasse, e incendiou
Hazor”
(Josué 11:10-11)
Alguns anos se passam, e quem
estava reinando em Hazor? Adivinhe:
“Assim
o Senhor os entregou nas mãos de Jabim, rei de Canaã, que reinava em Hazor.
O comandante do seu exército era Sísera, que habitava em Harosete-Hagoim. Os
israelitas clamaram ao Senhor, porque Jabim, que tinha novecentos carros de
ferro, os havia oprimido cruelmente durante vinte anos” (Juízes 4:2-3)
Não apenas Hazor estava sob o
controle dos cananeus (que não tinham desaparecido da terra e nem sido
aniquilados), como «oprimia cruelmente» os israelitas – nada que pudesse estar
mais distante da descrição de um povo que já teria sido exterminado décadas
antes, com toda a cidade incendiada e em ruínas.
Outro caso que chama particular
atenção é o dos refains, a quem “o Senhor os
exterminou” (Dt 2:21), de acordo com o segundo capítulo de Deuteronômio.
Pensaríamos que isso foi um genocídio completo se o capítulo seguinte não
dissesse que “Ogue, rei de Basã, era o único
sobrevivente dos refains” (Dt 3:11). Somos instados a pensar que Ogue
foi o único que se salvou do “genocídio”, mas então vemos Ogue «com todo o seu
exército» com ele, marchando para enfrentar os israelitas:
“Depois
voltaram e subiram pelo caminho de Basã, e Ogue, rei de Basã, com todo o seu
exército, marchou para enfrentá-los em Edrei. Mas o Senhor disse a Moisés:
Não tenha medo dele, pois eu o entreguei a você, juntamente com todo o seu
exército e com a sua terra. Você fará com ele o que fez com Seom, rei dos
amorreus, que habitava em Hesbom. Então eles o derrotaram, bem como os seus filhos
e todo o seu exército, não lhes deixando sobrevivente algum. E tomaram
posse da terra dele” (Números 21:33-35)
Agora que Ogue é morto e todo o
seu exército com ele, «sem deixar sobrevivente algum», pensamos que os refains
finalmente se foram. Só que não. Josué diz à tribo de Manassés que “se vocês são tão numerosos, e se os montes
de Efraim têm pouco espaço para vocês, subam, entrem na floresta
e limpem o terreno para vocês na terra dos ferezeus e
dos refains” (Js 17:15), mas eles recusam a proposta, com medo dos
refains (v. 16). Isso tudo apenas uma geração após o texto de Deuteronômio
2:21!
Os refains ainda são mencionados
muito tempo mais tarde, nos tempos de Davi (1Cr 20:4), embora nessa época já
parecessem pouco numerosos e depois não se ouve mais falar neles. De todo modo,
a existência contínua dos refains por pelo menos 400 anos refuta qualquer
pretensão de tomar o texto de Deuteronômio ao pé da letra. Trata-se, mais uma
vez, de uma hipérbole, sem qualquer pretensão de ser encarada literalmente. A
própria ordem de destruição em Deuteronômio carrega um paradoxo difícil de se
resolver do ponto de vista dos literalistas, pois diz:
“Quando
o Senhor seu Deus as tiver entregue a vocês, e vocês as tiverem derrotado,
então vocês as destruirão totalmente. Não façam com elas tratado algum, e não
tenham piedade delas. Não se casem com pessoas de lá. Não deem suas filhas aos
filhos delas, nem tomem as filhas delas para os seus filhos, pois elas
desviariam seus filhos de seguir-me para servir a outros deuses e, por causa
disso, a ira do Senhor se acenderia contra vocês e rapidamente os destruiria”
(Deuteronômio 7:2-4)
Após dizer que as nações
cananeias deveriam ser «destruídas totalmente», Deus alerta os israelitas a não
dar suas filhas aos filhos deles, para que não se desviassem e adorassem outros
deuses. Mas como isso seria possível, se a ordem foi de exterminar tudo e
todos? A própria discussão sobre dar ou não suas filhas aos cananeus não faria
sentido, como observa Copan: “Se os cananeus deviam
ser completamente destruídos, por que essa discussão sobre casamentos mistos ou
tratados?”.
No fim das contas, os jebuseus
(um dos sete povos cananeus) acabaram sendo absorvidos pelo rebanho de Israel,
e o próprio Senhor parece aceitar isso. O anjo do Senhor “mandou Gade dizer a Davi que construísse um altar na eira de Araúna,
o jebuseu” (1Cr 21:18), e dali em diante Davi “passou
a oferecer sacrifícios ali” (v. 28). Deus poderia ter mandado Davi
construir um altar em qualquer outro lugar, mas mandou que construísse
justamente na eira de um jebuseu – que deveria ter sido “totalmente
exterminado”, se a interpretação literalista estivesse certa.
Outra que não foi executada foi
a mulher cananeia que veio falar com Jesus:
“Uma
mulher cananeia, natural dali, veio a ele, gritando: ‘Senhor, Filho de
Davi, tem misericórdia de mim! Minha filha está endemoninhada e está sofrendo
muito’”
(Mateus 15:22)
Então Jesus mandou chamar os
soldados para “exterminá-la totalmente”, já que ela era cananeia e as mulheres
cananeias deviam ser executadas sem piedade, certo? Parece que não. Em vez
disso, Jesus não só atende ao pedido dela, como ainda exalta a sua fé (v. 28)! Ou
Jesus também era desobediente às ordens de Jeová, ou ele sabia que seu Pai
jamais ordenou que matassem mulheres cananeias. Considerando que ele o conhecia
melhor do que ninguém, é preferível a segunda hipótese.
Nunca é tarde lembrar que os
cananeus eram descendentes de Canaã, o neto amaldiçoado por Noé:
“E
despertou Noé do seu vinho, e soube o que seu filho menor [Cam, pai de Canaã]
lhe fizera. E disse: Maldito seja Canaã; servo dos servos seja aos seus irmãos.
E disse: Bendito seja o Senhor Deus de Sem [de quem viriam os hebreus]; e
seja-lhe Canaã por servo. Alargue Deus a Jafé, e habite nas tendas de Sem; e
seja-lhe Canaã por servo” (Gênesis 9:24–27)
Os judeus descendem de Sem, esse
outro filho de Noé a respeito do qual ele disse que Canaã «habitará nas tendas»
e «lhe será por servo». Ser “servo” é muito diferente de ser “exterminado”: a
profecia não foi sobre Sem exterminar Canaã ou fazer com que Canaã deixasse de
existir, mas sobre Canaã estar destinado a servir Sem (e para isso, ele
precisava continuar existindo). O melhor texto que deixa claro que o propósito
divino nunca foi de exterminar os cananeus é o que compara o destino dos
cananeus com o dos próprios israelitas, se fossem igualmente desobedientes:
“Mas
se vocês se esquecerem do Senhor, do seu Deus, e seguirem outros deuses,
prestando-lhes culto e curvando-se diante deles, asseguro-lhes hoje que vocês
serão destruídos. Por não obedecerem ao Senhor, ao seu Deus, vocês serão
destruídos como o foram as outras nações que o Senhor destruiu perante vocês”
(Deuteronômio 8:19-20)
O texto é claro: o mesmo que
aconteceu com «as outras nações que o Senhor destruiu perante vocês» (ou seja,
com os povos cananeus) aconteceria com Israel se os israelitas fossem infiéis
ao Senhor. Ambos seriam igualmente destruídos. Isso de fato se concretizou, quando
os pecados de Israel alcançaram o seu limite e os judeus foram deportados para
a Babilônia. Não obstante, apesar disso os judeus não foram completamente
exterminados, suas mulheres e crianças foram poupadas por Nabucodonosor e eles
até voltaram a conseguir seu território, e estão entre nós até hoje.
Se Deus prometeu que aconteceria
o mesmo com Israel que aconteceu com os povos que eles derrotaram, e Israel não
foi literalmente exterminado nem tampouco Deus ordenou que algum rei matasse as
crianças e as mulheres a sangue frio, por que não entender que o mesmo
aconteceu com os cananeus? Sendo Deus justo, por que Ele puniria um com
monstruosidades que ultrapassam a desumanidade, e pouparia o outro? Antes que
alguém diga que é por causa da maldade dos cananeus, Ezequiel 16 (em especial os
versículos 45-47) diz que nessa época os pecados de Israel já eram iguais ou
piores que os dos cananeus.
A única conclusão que nos resta
é que Deus agiu com justiça e equidade em ambos os casos: esperou a medida dos
pecados de cada um se encher para executar seu juízo sobre eles, enviando
outras nações para privá-los de sua pátria (mas não para exterminar até o
último homem, muito menos para ordenar a matança indiscriminada de mulheres e
crianças).
• Textos difíceis
Números 31 – O primeiro
que eu vi defender a tese de que Deus não mandou matar mulheres e crianças em
Canaã foi Paul Copan, e desde o começo eu não tive qualquer dificuldade em
aceitar que é de fato a interpretação mais coerente dos textos. Mas dois textos
em especial pareciam mais difíceis de se aceitar, o que leva muitos a pensar
que pelo menos ali houve a morte de mulheres e crianças inocentes. O mais
difícil deles, curiosamente, não está em Deuteronômio ou Josué, mas em Números
(que não fala nada sobre um “extermínio” dos cananeus). O povo supostamente
“exterminado” dessa vez são os midianitas:
“Os
israelitas capturaram as mulheres e as crianças midianitas e tomaram como
despojo todos os rebanhos e bens dos midianitas. Queimaram todas as cidades em
que os midianitas haviam se estabelecido, bem como todos os seus acampamentos.
Tomaram todos os despojos, incluindo pessoas e animais, e levaram os
prisioneiros, homens e mulheres, e os despojos a Moisés, ao sacerdote Eleazar e
à comunidade de Israel em seu acampamento, nas campinas de Moabe, do outro lado
de Jericó. Moisés, o sacerdote Eleazar e todos os líderes da comunidade saíram
para recebê-los fora do acampamento. Mas Moisés indignou-se contra os oficiais
do exército que voltaram da guerra, os líderes de milhares e os líderes de
centenas: ‘Vocês deixaram todas as mulheres vivas?’, perguntou-lhes. ‘Foram
elas que seguiram o conselho de Balaão e levaram Israel a ser infiel ao Senhor
no caso de Peor, de modo que uma praga feriu a comunidade do Senhor. Agora
matem todos os meninos. E matem também todas as mulheres que se deitaram com
homem, mas poupem todas as meninas virgens’” (Números 31:9-18)
Para ter uma ideia do quão
difícil é esse texto, até mesmo Copan abre uma exceção e reconhece que aqui é o
único lugar onde se vê a morte de mulheres e crianças. Poderíamos nos safar da
dificuldade desse texto simplesmente alegando que essas mortes não foram a
mando de Deus, pois o que Deus ordenou no início do capítulo foi apenas “vingue-se dos midianitas pelo que fizeram aos
israelitas. Depois disso você será reunido aos seus antepassados” (v.
2). É Moisés que teria interpretado a ordem divina como uma matança
indiscriminada a todo o povo, e como a própria Bíblia descreve Moisés como um
homem falho (Êx 2:12; Nm 20:12), ele podia ter falhado aqui também.
Mas nós não precisamos nos
precipitar em concluir isso aqui. Há vários detalhes no texto que passam oculto
a um leitor comum, e que nos ajudam a entender o que realmente aconteceu. Em
primeiro lugar, diferente do que parece a uma primeira vista, o texto não diz
que todos os homens foram mortos e os israelitas trouxeram apenas mulheres e
crianças cativas. O verso 11 também fala de «homens» tomados como despojo.
Embora a NVI traduza como “tomaram todos os despojos, incluindo pessoas e animais”
(v. 11), o hebraico traz adam onde é traduzido por “pessoas”,
termo que nunca significa crianças ou mulheres em particular e que quando não
está no sentido de “humanidade” significa invariavelmente “homens”. Uma vez que
os israelitas não levaram cativos toda a humanidade, é de homens (adultos) que
o texto se refere aqui.
Portanto, apesar do verso 7
dizer que os israelitas mataram «todos os homens», trata-se mais uma vez de uma
hipérbole (o que ficará comprovado mais à frente, quando vermos que os
midianitas continuaram existindo e ainda mais poderosos depois disso). Ademais,
o hebraico do verso 11 traz kāl
(todo) ham-mal-qō-w-aḥ (saque) bā-’ā-ḏām (de homens) ḇab-bə-hê-māh (e animais), indicando
que os israelitas trouxeram a Moisés todos os tipos de homens como
despojo (o que inclui crianças, adultos e velhos, não somente crianças).
Se é verdade que os israelitas
pouparam também homens adultos, será que Moisés se irritaria por terem poupado
as crianças e mandaria matar apenas elas, poupando justamente os homens
de guerra? Não parece fazer sentido, embora seja isso o que as pessoas pensem pelo
fato do verso 17 dizer «matem todos os meninos». É aqui que entra um detalhe importante
que poucos conhecem, mas que lança luz sobre o que realmente aconteceu e traz de
volta a harmonia que parece faltar ao texto: a Septuaginta.
Para quem não sabe, a
Septuaginta é a famosa versão grega do Antigo Testamento traduzida pelos
setenta e dois sábios judeus por volta do século III a.C (e por isso abreviada
como “LXX”). Como se trata de uma tradução, praticamente todas as versões
modernas da Bíblia a desdenham e preferem traduzir a partir do texto hebraico,
dado que o hebraico é o idioma no qual os escritores do AT escreveram. O
problema é que isso que é comumente chamado de “texto hebraico”, na verdade,
não é o texto original, mas uma reconstrução (leia-se: cópias de cópias de
cópias de...) do século IX d.C conhecida como “Texto Massorético”.
Enquanto os primeiros códices da
LXX (o Codex Sinaiticus e o Vaticanus) datam do século IV d.C, a cópia completa
mais antiga do Texto Massorético (o Códice de Leningrado) é apenas do século XI
d.C. Isso significa que a Septuaginta foi traduzida de um hebraico original
muito mais antigo – e, portanto, muito mais confiável – do que o Texto
Massorético. Assim, mesmo se tratando de uma tradução, o fato de ter sido organizada
e preservada com séculos de antecedência em relação ao Texto Massorético faz
dela uma versão provavelmente mais próxima do original hebraico do que aquilo
que hoje chamamos de “texto hebraico”.
O que podemos ter certeza é que
os apóstolos e evangelistas, em suas citações do Antigo Testamento no Novo
Testamento, acompanham com muito mais frequência o texto da LXX do que o Texto
Massorético (que nem existia na época deles), o que indica de que a LXX
traduziu bem o texto hebraico ainda disponível na época deles, e que
posteriormente sofreu mudanças pontuais por copistas até resultar no nosso
Texto Massorético. Um exemplo disso é o texto em que Estêvão diz que Jacó
trouxe 75 parentes ao Egito (At 7:14). Mas se você consultar Gênesis 46:27,
Êxodo 1:5 e Deuteronômio 10:22, irá encontrar 70 parentes, não 75.
Contradição bíblica? Não tão
cedo. 75 é precisamente o número de parentes que consta na tradução da LXX, o
que mostra que, pelo menos neste ponto, a LXX preservou corretamente o hebraico
original, e o Texto Massorético sofreu essa ligeira mudança nas mãos de
copistas (talvez por quererem arredondar o número, talvez por mero descuido). Outro
exemplo é o texto messiânico que diz que “a virgem
conceberá” (Is 7:14), muito usado por críticos da Bíblia pelo fato de no
hebraico (leia-se: no Texto Massorético) constar ‘almah (jovem), e não betulah
(virgem).
Mas eis que vamos à Septuaginta,
e o que encontramos lá? Precisamente a mesma palavra usada por Mateus em seu
evangelho (Mt 1:23): parthénos, que significa “virgem”. Estaria a LXX
adulterando a tradução para facilitar as coisas pro lado cristão? Com certeza
não, já que ela é de séculos antes do Cristianismo existir. É muito mais
provável que tenha acontecido o contrário: copistas judeus mudaram a palavra no
século IX d.C para tentar dissociar a profecia de Isaías de seu cumprimento em
Cristo, e por isso temos “jovem” no Texto Massorético.
Isso não significa
necessariamente que os escritores do Novo Testamento tinham a LXX em mãos. É mais
provável que eles seguissem o hebraico, mas o original, não o do século IX d.C.
O que acontece é simplesmente que esse hebraico original foi melhor preservado
na LXX do que no Texto Massorético, de modo que quando lemos as citações que o
NT faz ao AT, temos a impressão de que eles estavam citando da LXX. Também não
significa que o Massorético seja um “texto fraudulento”, porque ele concorda
com a LXX em 99% dos textos, divergindo em poucas ocasiões e em pequenos
detalhes envolvendo uma palavrinha ou outra.
O problema é que muitos textos
dependem de uma “palavrinha”, como é o caso de Isaías 7:14, e também é o caso
aqui. Sim, porque onde o Texto Massorético traz “meninos”, a LXX diz homens! O
que lemos na LXX é καὶ νῦν ἀποκτείνατε πᾶν ἀρσενικὸν ἐν πάσῃ
τῇ ἀπαρτίᾳ
καὶ πᾶσαν γυναῖκα ἥτις ἔγνωκεν κοίτην ἄρσενος ἀποκτείνατε, que significa “e agora matem todos os homens de toda a congregação, e
todas as mulheres que conheceram um homem”.
A primeira coisa a se observar é
que ela não diz “meninos”, mas “homens”. De fato, das 23 vezes em que ἀρσενικὸν aparece na LXX, ela nunca significa
meninos ou crianças em particular. Ela aparece, por exemplo, em Gênesis 34:25,
que diz que os filhos de Jacó mataram todos os homens (ἀρσενικὸν)
de Siquém, embora quatro versos depois sejamos informados que eles pouparam os
meninos (v. 29). Portanto, se o texto fala da morte de alguém, não é das
crianças que os soldados israelitas pouparam, mas dos homens (guerreiros) e das
mulheres não-virgens (i.e, as que tinham se envolvido na trama de perverter os
israelitas, que foi a razão do ataque).
O curioso é que mesmo o “texto
hebraico” abre margem para essa interpretação, porque a mesma palavra (taph)
traduzida como “meninos” no início do verso 17 (“matem todos os meninos”) é
usada novamente no final do verso 18 para as “meninas” virgens (“poupem todas
as meninas virgens”). Subtende-se assim que nem todas as meninas-taph eram
virgens, e se nem todas as meninas eram virgens, o termo também englobava
mulheres adultas (ou pelo menos adolescentes e jovens) que já tinham se
envolvido com homem. Se o termo designasse apenas crianças, ele por si só já
teria sido o suficiente.
E se no verso 18 o termo inclui mulheres
já sexualmente ativas (ou seja, com pelo menos mais de 13 anos, dada a cultura
da época), nada impede que a mesma palavra no verso anterior também aluda a jovens
e adultos (e não necessariamente crianças). Isso pode corroborar a ideia de que
o hebraico original se parecia mais com o que foi traduzido pela LXX (onde o
texto fala de “homens” e não de “meninos”) do que com o Texto Massorético, o
qual, como vimos, tende a se distanciar mais do original.
O que reforça essa interpretação
é que dois séculos mais tarde, na época de Gideão, “os
midianitas dominavam Israel; por isso os israelitas fizeram para si
esconderijos nas montanhas, nas cavernas e nas fortalezas” (Jz 6:2).
Duas coisas saltam aos olhos aqui. A primeira é que os midianitas continuavam
existindo, o que seria impossível se Moisés tivesse matado todas as mulheres e
crianças que os israelitas haviam poupado. Mesmo que o texto diga que as
virgens foram poupadas, elas foram poupadas «para vós», ou seja, foram
integradas à comunidade israelita – mesmo porque seria impossível se casarem
com um midianita se os midianitas estavam todos mortos. Consequentemente, elas
gerariam descendência para Israel, não para Midiã.
Portanto, para que os midianitas
sobrevivessem, era necessário que: (1) homens midianitas tenham sido poupados,
e (2) mulheres midianitas tenham sido poupadas entre as que continuaram em
Midiã e se casaram com midianitas, gerando descendência em Midiã (que mais
tarde enfrentaria os israelitas novamente). A segunda coisa notável no texto é
que os midianitas não só recuperaram as forças em um intervalo de apenas dois
séculos, mas chegaram a dominar os israelitas, domínio este que chegava
tão longe a ponto de exigir que os israelitas buscassem refúgio escondendo-se
em montanhas e cavernas – ou seja, um domínio total e absoluto.
Mesmo que a população não
tivesse sido totalmente exterminada, mas sobrado meia dúzia de gatos pingados,
como em um período de apenas dois séculos eles superariam a própria população
israelita de forma tão dominante? Mesmo se tivessem sobrado mil midianitas
vivos na época de Moisés, eles precisariam ter em média mais de 31 filhos por
casal durante os próximos duzentos anos para chegar a uma população de 1 milhão
de habitantes, número este inferior ao que os israelitas tinham na própria
época de Moisés, de cerca de dois milhões (Êx 12:37) – e isso desconsiderando
toda a taxa de mortalidade infantil e etc.
A única resposta razoável é que
boa parte do povo midianita foi poupado na ocasião, não somente as mulheres
virgens. Isso certamente inclui todas as crianças, e provavelmente muitos
adultos também (especialmente os que não se envolveram na guerra, e por isso
não representavam um perigo).
Deuteronômio 20 – O outro
texto que parece se confrontar com o nosso estudo é o que parece dizer pra poupar
mulheres e crianças apenas nas cidades que não eram cananeias, implicando que
em Canaã nem as mulheres e as crianças deveriam ser deixadas com vida:
“Quando vocês avançarem
para atacar uma cidade, enviem-lhe primeiro uma proposta de paz. Se os seus
habitantes aceitarem, e abrirem suas portas, serão seus escravos e se
sujeitarão a trabalhos forçados. Mas se eles recusarem a paz e entrarem em
guerra contra vocês, sitiem a cidade. Quando o Senhor, o seu Deus, entregá-la
em suas mãos, matem ao fio da espada todos os homens que nela houver. Mas as
mulheres, as crianças, os rebanhos e tudo o que acharem na cidade, será de
vocês; vocês poderão ficar com os despojos dos seus inimigos dados pelo Senhor,
o seu Deus. É assim que vocês tratarão todas as cidades distantes que não
pertencem às nações vizinhas de vocês. Contudo, nas cidades das nações que o
Senhor, o seu Deus, lhes dá por herança, não deixem vivo nenhuma alma. Conforme
a ordem do Senhor, o seu Deus, destruam totalmente os hititas, os amorreus, os
cananeus, os ferezeus, os heveus e os jebuseus. Se não, eles os ensinarão a
praticar todas as coisas repugnantes que eles fazem quando adoram os seus
deuses, e vocês pecarão contra o Senhor, contra o seu Deus” (Deuteronômio 20:10-18)
Na verdade, esse texto é mais
fácil de explicar do que parece. Quando se diz para «não deixar vivo nenhuma
alma», o sentido é que nenhuma alma deveria ser deixada com vida naquele
território, porque naquela terra não deveria haver nenhum cananeu
convivendo junto com os israelitas, justamente para que não ensinassem aos
hebreus as mesmas práticas perversas que lhes era de hábito. Mas, como vimos, mulheres
e crianças (e demais não-combatentes) fugiam quando uma fortificação caía, e
Deus nunca ordenou que os israelitas perseguissem os cananeus para fora de
Canaã.
Pensar dessa forma é confundir completamente
a missão que Deus lhes designou, que nunca foi “matem os cananeus onde quer que
se encontrem”, como se os israelitas fossem uma espécie de “caçadores de
cananeus” no mesmo sentido em que Vin Diesel é um caçador de bruxas naquele
infame filme; mas tomar posse da terra que pertencia aos cananeus, expulsando-os
da terra, como já foi explicado. As mortes não eram a finalidade, mas parte
do processo na medida em que os cananeus oferecessem resistência. É por isso
que nunca vemos israelitas correndo atrás de cananeus fora do território de
Canaã para exterminá-los – neste caso, Jesus teria sido o primeiro a matar a
mulher cananeia que veio ao seu encontro.
Assim, podemos entender o texto
como significando apenas que os israelitas não deveriam manter nenhum cananeu
na terra prometida à qual ocupariam, nem mesmo como escravos. Nenhuma alma
cananeia devia ser deixada viva ali, o que não significa que deviam
matar todos, mas que naquela terra não podiam permanecer. Como os outros povos
não tinham o mesmo nível de maldade, os israelitas estavam autorizados a fazer
escravos de guerra entre eles e levá-los a Israel (sobre a problemática da escravidão,
eu já tenho um livro inteiro a respeito, “A Bíblia e a Escravidão”,
onde mostro como a “escravidão” em Israel não tinha nada a ver com a escravidão
clássica ou transatlântica, e que um servo em Israel trabalhava menos do que
você e eu trabalhamos hoje).
O Dr. Valdenor Brito concorda
com essa interpretação quando escreve:
A contraposição é que, no
caso da guerra geral, as mulheres, crianças e animais seriam parte do espólio
de guerra, contudo, no caso da guerra contra os cananeus por ocasião da conquista,
as mulheres, crianças e animais não deveriam ser tomados como espólio de
guerra. Nada deve ser deixado com vida naquelas cidades, tamanha a destruição
que se deveria impor às cidades-estado cananeias. E as mulheres e crianças
dessas cidades-estado não deveriam ser integradas à sociedade israelita, porque
cairia nesse problema de que, mesmo se as cidades-estado cananeias fossem
tomadas, a cultura cananeia já existente acabaria se impondo sobre a israelita,
inviabilizando todo o projeto de construir uma sociedade com parâmetros mais
rigorosos de justiça.
Até mesmo a proposta de paz,
descrita no verso 10, era estendida também aos cananeus, de acordo com a Halacha
(jurisprudência judaica), embora sob termos diferentes daqueles apresentados
aos outros povos. Note que em parte nenhuma Deus diz que em Canaã não era para
enviar primeiro uma proposta de paz, Ele apenas diz que não era pra deixar
ninguém vivo naquela região. Como Brito explica, para os cananeus também havia
uma proposta de paz:
A
visão mais aceita é que, com base no texto do Deuteronômio, os israelitas não
deveriam chegar matando todos os cananeus. O que eles deviam fazer era,
primeiro, propor a paz. Nessa propositura da paz, além da questão do pagamento
de tributos aos israelitas (um imposto que autorizaria a morada na terra),
seria exigido das cidades-estado cananeias que cumprissem pelo menos as 7 Leis
de Noé, entre as quais há o preceito positivo de estabelecer tribunais para
aplicar a justiça. Assim, o problema da injustiça das cidades-estado cananeias
seria resolvido sem entrar em uma guerra, e sem também tornar tais cidades em
cidades israelitas, pois não se comprometeriam a seguir a Torá inteira, mas
apenas os aspectos universais já mencionados. (Rambam, Mishné Torá, Melachim
uMilchamot 6; Ramban, Comentário para Deuteronômio 20:10; Jerusalem Talmud,
Shevi’it 6:1; Leviticus Rabbah 17:6).
Ou seja, a “proposta de paz”
basicamente consistia em dar uma última chance de arrependimento aos cananeus,
que caso aceitassem se desviar dos seus maus caminhos poderiam compartilhar o
território com os israelitas (já que sua expulsão do território estava
condicionada à sua condição decaída). Alguém poderia objetar que estamos
falando apenas da tradição judaica neste ponto, que pode ter acrescentado ou
inventado coisas. Embora seja verdade que a tradição às vezes falte com a verdade,
neste caso a própria Bíblia sugere ter havido mesmo propostas de paz para os
cananeus.
Quem falou sobre isso foi
novamente Maimônides, que lembrou do texto de Josué 11:19, onde lemos: “Não houve cidade que aceitasse um acordo pacífico com os
filhos de Israel, exceto os heveus que viviam em Gibeão”.
E ele conclui que “destas declarações podemos
inferir que foi oferecido um acordo pacífico, mas eles não o aceitaram”.
Outra evidência foi citada pelo rabino Shlomo Yitzchaki, o qual observou que Deuteronômio
7:1 menciona sete nações cananeias que os israelitas deveriam conquistar, embora
posteriormente os girgaseus deixem de constar nas listas e só as outras seis
continuem sendo citadas (por exemplo, Jz 3:5; Êx 33:2, 23:23, 34:11; Dt 20:17,
etc).
Ele entende que isso ocorre
porque “os girgaseus se levantaram e emigraram por
causa deles [os israelitas] por sua própria vontade”,
o que explica por que eles aparecem no início, mas depois “somem”
misteriosamente da Bíblia, sem ser mencionada qualquer guerra ou conquista
territorial como é feito em relação aos demais. Maimônides também tinha uma
resposta para aqueles que usassem o caso dos gibeonitas como prova de que
nenhuma proposta de paz foi feita aos povos cananeus:
Josué enviou três cartas aos
cananeus antes de entrar na terra prometida: A princípio, ele os enviou: “Quem
quiser fugir, fuja”. Depois, enviou uma segunda mensagem: “Quem quiser aceitar
um acordo pacífico, deve fazer a paz”. Então, ele enviou novamente: “Quem
deseja a guerra, deve lutar”. Em caso afirmativo, por que os habitantes de
Gibeão empregaram um estratagema? Porque originalmente, quando ele lhes enviou
a mensagem como parte de todas as nações cananeias, eles não aceitaram. Eles
não estavam cientes das leis de Israel e pensaram que nunca mais lhes seria
oferecido um acordo pacífico. Por que foi difícil para os príncipes de Israel
aceitar a questão, a ponto de desejarem matar os gibeonitas à espada, se não
fosse o juramento que haviam feito? Porque eles fizeram uma aliança com eles e
Deuteronômio 7:2 declara: “Não faça uma aliança com eles”.
O próprio Moisés fez
explicitamente uma proposta de paz a um povo cananeu, que é a prova mais forte
de que eles não saíam matando logo de cara. Estamos falando do texto que diz:
“Então
Israel mandou mensageiros a Siom, rei dos amorreus, dizendo: Deixa-me passar
pela tua terra; não nos desviaremos pelos campos nem pelas vinhas; as águas dos
poços não beberemos; iremos pela estrada real até que passemos os teus termos.
Porém Siom não deixou passar a Israel pelos seus termos; antes Siom congregou
todo o seu povo, e saiu ao encontro de Israel no deserto, e veio a Jaza, e
pelejou contra Israel. Mas Israel o feriu ao fio da espada, e tomou a sua terra
em possessão, desde Arnom até Jaboque, até aos filhos de Amom; porquanto o
termo dos filhos de Amom era forte. Assim Israel tomou todas as cidades; e
habitou em todas elas, em Hesbom e em todas as suas aldeias. Porque Hesbom era
cidade de Siom, rei dos amorreus, que tinha pelejado contra o precedente rei
dos moabitas, e tinha tomado da sua mão toda a sua terra até Arnom”
(Números 21:21–26)
Tenha em mente que os amorreus
eram uma das sete nações cananeias citadas em Deuteronômio 7:1 e em todos os
outros textos – ou seja, era uma daquelas que os israelitas deviam “exterminar”,
em tese. Mesmo assim, Moisés não chega chutando o pau da barraca e atacando
como se não houvesse amanhã. Primeiro ele oferece uma proposta de paz, e só
depois que a oferta é recusada é que a guerra é declarada. Portanto, é evidente
que propostas de paz, independente do teor das mesmas, também eram estendidas
aos cananeus, embora a grande maioria deles recusasse (com as notáveis exceções
dos gibeonitas e dos girgaseus).
• Considerações finais
Vimos neste capítulo que não,
Deus nunca mandou matar crianças nem mulheres inocentes, e que é a própria
exegese séria dos textos que nos leva a essa conclusão. É importante que isso
seja destacado, porque desde sempre houve teólogos que negaram a ideia de que
Deus tenha mandado matar crianças e mulheres cananeias, mas eles eram por regra
liberais que não criam que Deus mandou matar simplesmente porque não
acreditavam nos relatos bíblicos como registros históricos – ou seja, não acreditavam
que sequer houve uma “conquista de Canaã”.
Assim, os teólogos mais
conservadores foram levados a pensar que crer que Deus mandou matar mulheres e
crianças era o único jeito de não negar a historicidade da Bíblia e,
consequentemente, o único jeito de não negar a Bíblia como a Palavra de Deus. Ao
mesmo tempo, sempre existiram teólogos não tão liberais assim e crentes na
Bíblia como a Palavra de Deus que acreditam que todos os trechos em que Deus
manda matar são “metáforas” ou “alegorias”, uma explicação bastante forçada e
superficial que visa apenas fugir do problema, em vez de oferecer uma resposta
a ele. Não que a Bíblia não tenha metáforas e alegorias, mas isso só acontece
em contextos específicos (como parábolas, poesias, visões e simbologias
enigmáticas), não em registros históricos.
Este é o grande diferencial
deste estudo: enquanto liberais negam o “genocídio” por negarem a historicidade,
e outros tentam contornar o problema com soluções fáceis que não convencem
ninguém e nem se dão ao trabalho de argumentar exegeticamente, vimos pela
própria exegese que os textos não têm nenhuma intenção de transmitir a ideia de
um genocídio indiscriminado ou de uma matança de mulheres e crianças, e para
isso não é preciso negar a historicidade de qualquer acontecimento bíblico –
seja o êxodo do Egito, a conquista de Canaã ou a própria existência histórica
de Moisés e Josué.
O que constatamos aqui está
dentro das regras mais elementares da hermenêutica, é corroborado pela tradição
judaica e comprovado pelas descobertas arqueológicas. Mais do que isso, é de
longe a interpretação que melhor se harmoniza com os outros textos bíblicos,
que seriam simplesmente contraditórios se desconsiderássemos o caráter
hiperbólico dos textos (por exemplo, os amalequitas sendo exterminados em um
capítulo, e alguns capítulos depois já estarem em guerra com os israelitas de
novo).
Na verdade, quem realmente compromete
a doutrina da inerrância são justamente os que se apegam ao pé da letra sem
saber como explicar discrepâncias como essa, que se harmonizam perfeitamente
bem dentro da ótica deste estudo. Assim, longe dessa conclusão ser
“heterodoxa”, o que ela realmente faz é resguardar a verdadeira ortodoxia –
aquela que não nega a historicidade dos textos nem acusa a Bíblia de contradizer
a si mesma. Ela só é “contraditória” se desconsiderarmos os aspectos exegéticos
mais básicos, como o da hipérbole, o que faria qualquer um parecer
“contraditório” por dizer que “todo mundo veio à festa” só porque nem todas as
oito bilhões de pessoas do planeta compareceram.
Mais importante do que
resguardar a inerrância bíblica, nosso estudo serve para responder ao cerne dos
ataques neo-ateus, já que “Deus mandou matar” é a principal arma usada por eles
desde sempre. Ao saber que eu estava escrevendo sobre o assunto, certo amigo me
disse que “se você estiver certo, acaba com 80% dos argumentos deles”. E não penso
que seja exagero: são inúmeros os que abandonaram as fileiras do Cristianismo
por não conseguirem conciliar a ideia de um Deus de amor e misericórdia com os
supostos “genocídios” indiscriminados que Ele teria ordenado – um exemplo que
poderia ser citado é o de Clarion de Laffalot, que primeiro tentou se conformar
com a ideia de serem “metáforas” e depois se deu por vencido e virou ateu
militante.
É por isso que é preciso
desconfiar de toda e qualquer doutrina que parece “bíblica”, mas que contrasta
flagrantemente com o caráter de Deus revelado nas Escrituras e tem um potencial
enorme de desviar os crentes da fé. Se uma doutrina distorce o caráter de Deus,
devemos ter o bom senso de pensar que ela provavelmente não provém dEle, e
somos nós que estamos equivocados na nossa forma de interpretar a Bíblia. Mesmo
que nem sempre tenhamos todas as respostas na mão, podemos estar certos de que
elas existem, e cabe a nós buscá-las.
Conquanto muitos pensem que
defender a visão genocida da conquista de Canaã seja o único jeito de “defender
a Bíblia” ou de “defender Deus”, vimos que toda essa defesa é inteiramente
desnecessária, uma vez que não é nem o que a Bíblia ensina, muito menos o que
Deus quer. Pelo contrário, acaba sendo prejudicial tanto à fé das pessoas,
quanto à credibilidade da Bíblia e à imagem de Deus.
Quando entendemos o que de fato
se passou em Canaã, não estamos apenas corrigindo interpretações bíblicas equivocadas:
estamos restabelecendo a imagem de um Deus “compassivo
e misericordioso, mui paciente e cheio de amor” (Sl 103:8), que poupou a
capital mais cruel do mundo antigo (Nínive) por causa de 125 mil crianças que
lá haviam (Jn 4:11), e colocando um ponto final numa tradição milenar que não
serviu para nada além de fomentar a “guerra santa”, a Inquisição, o genocídio
indígena e outras tantas mazelas praticadas “em nome de Deus” por pessoas que de
Bíblia não sabiam nada, e de Deus menos ainda.
Paz a todos vocês que estão em Cristo.
Por Cristo e por Seu Reino,
- Siga-me no Facebook para estar por dentro das atualizações!
Excelente artigo, irmão Lucas 👏🏻👏🏻👏🏻🗿
ResponderExcluirEspero ansiosamente por mais publicações, pois aprendo muito lendo elas. Deus abençoe 🙏🏻🙏🏻
Vlw Vinni, Deus lhe abençoe igualmente!
Excluirsenhor Lucas, desculpa encher de comentários aqui kkk é que gostaria de perguntar sobre o livro "a lenda branca da inquisição"? Pretende ainda publicar? Gostaria muito de poder ler. Deus o abençoe 🙏🏻
ResponderExcluirComo eu parei de escrever na metade (e isso já faz 8 anos), eu ainda precisaria retomar o livro pra publicá-lo (e revisar toda a linguagem também), mas como tenho outros projetos no momento isso deve demorar. Mas eu posso enviar por e-mail o que já foi escrito do livro, é só me solicitar lá (meu e-mail é lucas_banzoli@yahoo.com.br).
ExcluirEu compreendo, mas aguardarei a conclusão 🙏🏻🙏🏻 um dia sai né kkkk
ExcluirEu dizia a mesma coisa a respeito do meu livro sobre a Inquisição e já se passou uma década desde então xD
ExcluirBom dia.
ResponderExcluirSobre a passagem de deuteronomio 20, diz que pode tomar mulheres e crianças como despojo de guerra quando guerrear com nações de fora de canaã. Deus não foi imoral ao permitir tomar mulheres e crianças como despojo, porque eles eram inofensivos?
Provavelmente se tratava de viúvas de homens de guerra e órfãos, os israelitas não roubavam as mulheres dos outros e Deus não permitiria isso (é contra os dez mandamentos, inclusive), neste cenário seria melhor para eles ter uma nova família com os israelitas do que viver como órfão e viúva (cuja condição era naquela época infinitamente pior do que é hoje).
ExcluirLucas, a Paz do Senhor
ResponderExcluirO que diz sobre o papa Francisco ter "abençoado" casais homoafetivos, que gerou um estardalhaço só. Aí os católicos pra passar pano, dizem que ele voltou atrás no que falou, citando que na verdade ele estaria "abençoando" o indivíduo em si, e não a relação.
Como nesse link que os catoca adora divulgar: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/papa-diz-que-bencaos-lgbt-sao-para-individuos-nao-aprovacao-de-unioes/#:~:text=%E2%80%9CQuando%20um%20casal%20se%20apresenta,realizadas%20em%20um%20contexto%20lit%C3%BArgico.
Eu te respondi lá na mensagem idêntica que você me mandou lá no canal há uns dias atrás (como eu sou bem menos ativo aqui do que lá, acabei respondendo lá antes...).
ExcluirEu vi lá, é que aqui eu não recebo as notificações dos comentários no navegador, mesmo estando tudo ativado. Mas muito obrigado mesmo assim 🙏🏻
ExcluirLucas, eu te fiz uma pergunta sobre o tráfico de escravos na lei de moises pelo Messenger, mas vc não entendeu.
ResponderExcluirObrigado por ter respondido, só que vc não entendeu as coisas que eu quis dizer. Vou explicar melhor.
Me refiro a uma situação em que, por exemplo, um filisteu sequestra outro filisteu e o faz escravo. Aí, esses filisteus q estão escravizando o vendem pra um israelita. Nesse caso, o israelita tá errado de comprar, pq o filisteu é inocente. Como os israelitas faziam pra saber se o escravo que ele tava comprando do estrangeiro não era um inocente?
Eles não teriam como saber, realmente. Mas da ótica do escravo, seria muito menos ruim ser escravo em Israel do que entre os filisteus.
ExcluirOlá!
ResponderExcluirSobre as mulheres e crianças que eram levadas pelo exército israelitas em guerra das terras de fora de canaã, vc disse que provavelmente se tratava de viúvas de homens de guerra e órfãos, os israelitas não roubavam as mulheres dos outros e Deus não permitiria isso.
Tem uma coisa que não entendi sobre isso. Quando vc diz que essas mulheres levadas eram viúvas de guerra, vc quer dizer que os israelitas iam na terra deles, matavam o marido dela e ela, por livre vontade, a mulher ia com um homem do exército que matou seu marido pra ser esposa? Nenhuma mulher ia querer ser esposa de um integrante do exército que matou seu marido.
Como assim elas eram "viúvas de guerra"?
Você está presumindo isso com uma ótica ocidental do século XXI que enxerga a guerra como algo antinatural e onde viúvas são bem tratadas e tem boas oportunidades de vida. No mundo antigo a guerra era normalizada, era tratada como algo "natural", eles estavam sempre em guerra e uma situação dessas, por pior que seja, era totalmente compreensível, ninguém iria pensar que um exército é "mau" por ter matado um outro exército. E as viúvas naquela época estavam fadadas à miséria e ao desprezo, ninguém queria se casar com elas por já terem tido um homem e ninguém as sustentava uma vez que estavam sozinhas. Enquanto estava vivo, o marido era sua única fonte de renda, agora que ele morreu nem isso ela teria mais, não poderia nem trabalhar pra ganhar seu próprio sustento porque em muitos lugares a mulher era proibida de sair de casa. Por isso as viúvas na Índia eram queimadas, diziam que não serviam a qualquer propósito vivas (e na cultura dos outros povos não era muito diferente). Ao se casar com um israelita, elas pelo menos teriam alguma oportunidade na vida, não morreriam na miséria nem teriam que se matar. Era certamente um "mal menor".
ExcluirInteressante observação, Lucas: os israelitas eram humanitários com os inimigos em guerra.
ResponderExcluirMas então como explicar 2Reis 3, onde o profeta Eliseu ordena que os israelitas destruam as terras dos moabitas?
¹⁹ "E ferireis a todas as cidades fortes, e a todas as cidades escolhidas, e todas as boas árvores cortareis, e entupireis todas as fontes de água, e danificareis com pedras todos os bons campos."
²⁵ E [os israelitas] arrasaram as cidades, e cada um lançou a sua pedra em todos os bons campos, e os entulharam, e entupiram todas as fontes de água, e cortaram todas as boas árvores, até que só em Quir-Haresete deixaram ficar as pedras, mas os fundeiros a cercaram e a feriram.
E será que Flávio Josefo seria a prova de que a Septuaginta é uma farsa? http://solascriptura-tt.org/Bibliologia-PreservacaoTT/FlaviusJosephus-ProvaInexistenciaSeptuagintaLXX-TGroppi.htm
Seja como for, Israel não praticou genocídio nem no passado e nem hoje! https://www.deviantart.com/gylmargeniuscat/art/Memes-Lula-Genocide-Vs-Democide-1024851938
Essa tradução fala das cidades fortificadas e das "cidades escolhidas", mas na LXX consta apenas "destruireis toda cidade fortificada", indicando que eles fizeram isso apenas nas zonas de fortificação militar e não nas zonas civis:
Excluirhttps://biblehub.com/sepd/2_kings/3.htm
Não vejo problema algum em Josefo traduzir do hebraico para o grego quando fazia uma citação da Bíblia, ele não era obrigado a usar a LXX, ainda mais sabendo perfeitamente bem ambos os idiomas ele poderia facilmente traduzir do hebraico para o grego (ainda mais se ele considerava o hebraico o texto original e livre de erros). Eu também nunca disse que "os apóstolos citaram o AT da LXX", mas sim que eles citaram de um hebraico disponível na época deles e esse hebraico era muito mais próximo da LXX do que do Texto Massorético que temos hoje, por isso os textos parecem ter sido citados da LXX.
De todo modo, essa tese de que a LXX é uma invenção posterior a Josefo é pura teoria de conspiração totalmente desacreditada no meio acadêmico, é análogo às conspirações sobre Jesus nunca ter existido e coisas do tipo. Há vários autores de antes de Cristo que mencionaram a LXX, eles não eram profetas nem doidos da cabeça. Na verdade, eles só defendem essa teoria porque o site deles é de linha fundamentalista que acha que a King James é a única tradução perfeita no inglês, a ACF é a única tradução perfeita no português e o Receptus é o único texto grego perfeito, eles tem esse entendimento bastante infantil de que "pra ser inerrante tem que ter uma cópia/tradução perfeita preservada até hoje", aí ficam endeusando esse ou aquele e desmerecendo todos os demais.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirCorrigindo o comentário. No penúltimo parágrafo tem uma pergunta.
ResponderExcluirBom dia!
Tenho uma dúvida sobre a passagem que deus manda matar todos os amalequitas.
Vc já falou que "matar todos" não é "matar todos" e o texto tá usando uma linguagem hiperbólica pra dizer que haveria uma conquista total, ou seja, eles matariam só homens do exército adversário fazendo uma conquista militar total.
Mas, aí eu tenho uma dúvida. Mesmo que deus nao tenha mandado o exército de saul matar mulheres e crianças, ele não foi imoral ao fazer vingança contra os amalequitas por ter cercado os israelitas no deserto?
Deus também não teria sido contraditório já que o Deus filho (jesus) pregava a não vingança e Deus pai(jeova) mandou se vingar dos amalequitas e ambos são a mesma essência? Responda essas duas perguntas, por favor!
Bom dia! No penúltimo parágrafo tem ponto de interrogação.
ResponderExcluirTenho uma dúvida sobre a passagem que deus manda matar todos os amalequitas.
Vc já falou que "matar todos" não é "matar todos" e o texto tá usando uma linguagem hiperbólica pra dizer que haveria uma conquista total, ou seja, eles matariam só homens do exército adversário fazendo uma conquista militar total.
Mas, aí eu tenho uma dúvida. Mesmo que deus nao tenha mandado o exército de saul matar mulheres e crianças, ele não foi imoral ao fazer vingança contra os amalequitas por ter cercado os israelitas no deserto?
Deus também não teria sido contraditório já que o Deus filho (jesus) pregava a não vingança e Deus pai(jeova) mandou se vingar dos amalequitas e ambos são a mesma essência?
Here is my take on the conquests of Canaan:
ResponderExcluirhttps://rationalchristiandiscernment.blogspot.com/2023/02/on-historicity-and-morality-of.html
https://rationalchristiandiscernment.blogspot.com/2023/02/on-historicity-and-morality-of.html
The second link is the same as the first, I think you confused the sequence link.
ExcluirI'm sorry. Here is the second part of my series:
Excluirhttps://rationalchristiandiscernment.blogspot.com/2023/02/on-historicity-and-morality-of_5.html
The analogy he makes between Israel and Hitler could not be more infamous. In fact, it was just the opposite: all the historical and archaeological evidence points out that the canaanites were the ones who could really be compared to Hitler, with their practices of child sacrifice, ritualistic rapes and excessive violence.
ExcluirÓtimo texto Lucas. Vi muitos "evangélicos" apoiando, e até festejando o genocídio na Faixa de Gaza. Muitos desses citavam justamente essas passagens bíblicas como se fossem um aval para que o moderno Estado de Israel exterminasse seus "inimigos", incluindo mulheres e crianças palestinas. Eles justificam a matança sionista como uma ordenança de Deus, e ainda cometem anacronismo confundindo o atual Estado de Israel com o Israel bíblico. E o pior é que muitas dessas falas de ódio partem de pastores e líderes que se dizem evangélicos. Esse sionismo dito cristão sempre está do lado de Israel, independente do que ele faça. Nem os israelenses estão aguentando mais o Netanyahu, e os "cristãos" o defendendo com unhas e dentes. Isso mostra a ignorância histórica e bíblica que cega essas pessoas para engolirem tudo que lhes é dito por seus líderes. Abraço!
ResponderExcluir