27 de junho de 2023

11 A misoginia no Antigo Oriente Próximo


Nota introdutória

 
Como ultimamente eu tenho tido pouco tempo para publicar novos artigos, vou recorrer ao meu velho hábito de postar trechos de livros que estão sendo escritos. Atualmente eu estou escrevendo dois: um é "A História da Misoginia", de onde vem o artigo em questão, e o outro é uma historinha infanto-juvenil que estou mais perto de terminar. O trecho abaixo é um extrato de um dos capítulos, que contém o mesmo título mas é mais abrangente no livro. É importante mencionar que eu ainda não revisei esses trechos, ou seja, eles podem conter crassos erros ortográficos que você deverá me perdoar. Sem mais, boa leitura!


 O Código de Urukagina
 
Os códigos de leis mais antigos de que temos registro vem da Mesopotâmia, o berço das primeiras civilizações da história, localizada no Antigo Oriente Próximo. Delas, a mais antiga é a Suméria, que surgiu por volta do quarto milênio a.C. e floresceu entre os rios Tigre e Eufrates, ao sul do atual Iraque. A língua sumeriana é tida como a mais antiga do mundo, e seu primeiro código de leis registrado por escrito e preservado até os dias de hoje data de cerca de 2300 a.C. Estamos falando do Código de Urukagina, uma série de inscrições em pedra atribuídas ao rei Urukagina, que governou a cidade suméria de Lagash.
 
Embora o código seja bem menos conhecido que o de Hamurabi ou o de Ur-Namu e pouco fale a respeito das mulheres, ele ordena que «se uma mulher disser [texto ilegível] a um homem, sua boca será esmagada com tijolos queimados». Embora o texto não preserve o que de tão mau a mulher teria dito a um homem, parece evidente que a punição era totalmente desproporcional – e em parte alguma atribuída a um homem que dissesse qualquer coisa a uma mulher.
 
Outra desproporção se encontra na punição à mulher que teve vários maridos: A mulher que teve vários maridos deve ser apedrejada”[1]. Como Marilyn French observa, não há nenhuma lei de Urukagina penalizando os homens que se casaram muitas vezes (na verdade, não temos nem mesmo leis punindo o adultério quando praticado por homens!), o que faz desses fragmentos “a primeira evidência escrita da degradação das mulheres”[2].
 
 
 O Código de Ur-Namu
 
O segundo código de leis encontrado na Suméria, mais especificamente na cidade de Ur, é o Código de Ur-Namu. Ur-Namu foi o fundador da terceira dinastia de Ur e reinou entre 2112 e 2095 a.C, período no qual redigiu este código. Entre outras coisas, ele diz que “se a esposa de um homem seguisse outro homem e ele dormisse com ela, eles matariam aquela mulher, mas aquele homem seria libertado”[3]. Não bastasse matar a adúltera e deixar o adúltero livre, o código ainda prescreve um ritual pelo qual a mulher acusada de adultério era obrigada a passar para provar sua inocência – que muitas vezes resultava na morte da vítima – e uma punição das mais leves caso ela sobrevivesse ao teste, provando assim sua inocência:
 
“Se um homem acusou a esposa de um homem de adultério, e a provação do rio provou que ela era inocente, então o homem que a acusou deve pagar um terço de uma mina de prata” (Código de Ur-Namu, 14)
 
O que era essa “provação do rio”? Copan explica:
 
A acusada era jogada em um poço de betume – isto é, um alcatrão natural de petróleo comumente usado como argamassa para tijolos. Na Suméria, esse “rio” de alcatrão era a morada do deus Id (que significa “rio”). Às vezes, elas eram vencidas pelo líquido e seus vapores tóxicos, mas a maioria sobrevivia (era “cuspida” pelo deus do rio), o que ainda assim era um pesadelo de se suportar. Se alguém fosse “vencida” pelo rio, era culpada, pois sua morte era o “julgamento” do deus do rio. (...) Se a acusada não sabia nadar e sair do alcatrão, ela pareceria culpada, mesmo sendo inocente! A provação do rio assumia a culpa até que a inocência fosse provada.[4]
 
Pense na situação: se uma mulher fosse simplesmente acusada de adultério por um homem, mesmo sem nenhuma prova, e mesmo que o acusador nem fosse o seu marido, ela era obrigada a passar por uma “prova” onde muitas delas morreriam, e as que não morressem sofreriam traumas indescritíveis e sequelas físicas das mais terríveis. E mesmo neste caso, se ela sobrevivesse, a “punição” do homem caluniador era apenas uma pequena quantia em dinheiro(!), o qual não pagaria nada se ela morresse e assim “provasse” que a acusação era verdadeira. Era essa a condição das mulheres no berço da civilização antiga.
 
 
 O Código de Esnuna
 
Outro código mesopotâmico é o da cidade de Esnuna, próxima à Suméria, datado de aproximadamente 1930 a.C. Dos 60 artigos do código, apenas um trata das mulheres, o que diz que quando for surpreendida sobre o ‘peito’ de outro, morrerá”[5]. Assim como o Código de Urukagina, nenhuma punição é prescrita para o adultério masculino.
 
 
 O Código de Hamurabi
 
O código de leis mais famoso da Antiguidade é o Código de Hamurabi, um rei babilônico que reinou entre 1792 e 1750 a.C. O código é mais conhecido por instituir a lei de talião (“olho por olho, dente por dente”), o que na Babilônia era entendido num sentido bem literal. Uma das leis que trata das mulheres diz que se uma irmã de Deus, que não habita com as crianças (mulher consagrada que não se pode casar) abre uma taberna ou entra em uma taberna para beber, esta mulher deverá ser queimada”[6].
 
Ao mesmo tempo em que a pena para a mulher celibatária que bebe era a morte, a pena para um homem que espancasse a mulher até a morte era uma simples indenização (paga provavelmente ao marido ou aos pais, reforçando a noção de que mulher era propriedade). E se a mulher fosse uma serva, a indenização era ainda menor:
 
“Se a filha de um liberto aborta por pancada de alguém, este deverá pagar cinco siclos. Se essa mulher morre, ele deverá pagar meia mina. Se ele espanca a serva de alguém e esta aborta, ele deverá pagar dois siclos. Se esta serva morre, ele deverá pagar um terço de mina” 
(Código de Hamurabi, 211-214)
 
Hamurabi também prescreve a “provação do rio”, da qual já falamos. A lei de no 132 diz que “se contra a mulher de um homem livre é proferida difamação por causa de um outro homem, mas não é ela encontrada em contato com outro, ela deverá saltar no rio por seu marido”[7]. Note que mesmo a difamação sendo gratuita, sem ser encontrada qualquer prova, a mulher ainda assim tinha que «saltar no rio» para provar que era fiel ao marido, como se o ônus da prova estivesse com ela e não com o acusador, que poderia ser qualquer um.
 
Outro caso em que a mulher deveria ser lançada no poço de betume era quando ela acusava o marido de não ter relações com ela, para assim ter permissão de voltar à casa de seu pai. Se fosse provado que o marido era ausente, a moça conseguia a permissão e nada acontecia ao marido, mas se ficasse provado que a moça é que era ausente, ela era lançada no rio:
 
“Se uma mulher discute com o marido e declara: ‘Tu não tens comércio comigo’, deverão ser produzidas as provas do seu prejuízo, se ela é inocente e não há defeito de sua parte e o marido se ausenta e a descura muito, essa mulher não está em culpa, ela deverá tomar o seu donativo e voltar à casa de seu pai. Se ela não é inocente, se ausenta, dissipa sua casa, descura seu marido, dever-se-á lançar essa mulher na água” 
(Código de Hamurabi, 142-143)
 
Outro exemplo que exclama a desigualdade de tratamento era quando o homem ou a mulher pediam divórcio. Embora Hamurabi condene ambos, a punição imposta à mulher era muito mais severa: “Se uma esposa for infiel ao marido e depois disser: ‘Você não é meu marido’, que ela seja jogada no rio. Se um marido disser a sua esposa: ‘Você não é minha esposa’, ele deverá pagar como multa meio mana de prata”[8]. Enquanto a vida do homem nunca estava em risco por qualquer coisa que pudesse fazer à mulher, a da mulher estava sempre em risco por qualquer coisa banal ou supérflua.
 
 
 Outras leis babilônicas
 
Há evidência de que no caso acima a mulher já era lançada na água morta, pois um contrato de casamento encontrado alguns séculos antes, também na Babilônia, prescrevia o estrangulamento seguido do lançamento na água quando a mulher dissesse ao marido exatamente o mesmo, mudando-se apenas a indenização paga pelo homem, já que a moeda havia mudado. O fragmento é datado de 2200 a.C, e diz o seguinte:
 
“Se Bashtum para Rimum, seu marido, disser: ‘Você não é meu marido’, eles devem estrangulá-la e jogá-la no rio. Se Rimum para Bashtum, sua esposa, disser: ‘Você não é minha esposa’, ele pagará dez siclos de dinheiro como pensão alimentícia. Eles juraram por Shamash, Marduk, seu rei Shamshu-ilu-na e Sippar”[9]
 
Mesmo muito tempo mais tarde, em pleno século VI a.C, ainda havia na Babilônia contratos de casamento por compra, onde o pai da moça literalmente a vendia em troca de escravos e dinheiro, como mostra um contrato de casamento firmado em 591 a.C entre Dagil-ili e Latubashinni, comprada «por meio mana de dinheiro» além de uma escrava chamada Ana-eli-Bel-amur[10]. O antropólogo social Massoume Price escreve que na Babilônia o marido tinha até mesmo o direito de penhorar a esposa como garantia de dívidas[11], o que denuncia até que ponto a mulher era encarada como propriedade.
 
Um exemplo semelhante da objetificação das mulheres na Babilônia é narrado pelo célebre historiador grego Heródoto (485-425 a.C), considerado o «pai da história». Ele nos fala do antigo costume babilônico de vender mulheres por leilão(!) para os homens que pagassem mais:
 
“Falarei, a seguir, de seus costumes; este é o mais sábio, em nossa opinião, e fui informado de que os ênetos da Ilíria também o seguem: em cada burgo, os que possuíam filhas núbeis levavam-nas, todos os anos, a um certo lugar, onde se reunia em torno delas grande quantidade de homens. Um leiloeiro apregoava-as e vendia-as, uma após outra. Começava sempre pela mais bela, e depois de haver obtido boa soma por ela, passava a apregoar a que se lhe aproximava em beleza, e assim por diante. Só as vendia, porém, com a condição de os compradores desposá-las. Todos os babilônicos ricos e em idade de casamento para lá se dirigiam, fazendo suas ofertas. Quanto à gente do povo que desejava casar-se, como pouca pretensão tinha de desposar belas criaturas, arrematava as mais feias com o dinheiro que davam a estas. Com efeito, mal o leiloeiro terminava a venda das belas, erguia uma das mais feias ou uma das estropiadas, se as houvesse, e apregoando-a pelo mais baixo preço, perguntava quem queria desposá-la como condição essencial, adjudicando-a àquele que o prometesse”[12]
 
Note que Heródoto não retrata esse costume com horror ou estranheza, e ainda o descreve como «sábio», já que os próprios gregos, como veremos mais adiante, estavam longe de tratar as mulheres com mais respeito. Ele também fala de pais que prostituíam as próprias filhas por dinheiro, não como um evento raro, mas como uma situação generalizada: “Depois da tomada da Babilônia e das brutalidades sofridas pelos habitantes, os babilônicos perderam seus bens, e não há mais ninguém que, ao ver-se na indigência, não prostitua as filhas por dinheiro”[13].
 
Tão longe iam os babilônicos na objetificação das mulheres que alguns de seus costumes escandalizavam até Heródoto, que não se mostrava muito chocado com o leilão de esposas ou a prostituição forçada. O mais bizarro deles, difícil até de se imaginar nos dias de hoje, era o que obrigava todas as mulheres do país a entregar-se sexualmente a um estranho pelo menos uma vez na vida. Os detalhes que Heródoto fornece a respeito da prática são ainda mais repulsivos:
 
“Os babilônicos possuem, todavia, uma lei vergonhosa: toda mulher nascida no país é obrigada, uma vez na vida, a ir ao templo de Vênus para entregar-se a um estrangeiro. Muitas dentre elas, não querendo confundir-se com as outras pelo orgulho que lhes inspira a riqueza, dirigem-se ao templo em carro coberto. Lá permanecem sentadas, tendo atrás de si grande número de criados; mas a maioria senta-se no recinto sagrado, com a cabeça cingida por uma corda. Quando umas chegam, as outras se retiram. Veem-se, em todos os sentidos, alas separadas por cordas estendidas. Os estrangeiros passeiam por entre as alas e escolhem as mulheres que mais lhes agradam. Quando uma mulher toma lugar ali, não pode voltar para casa senão depois que algum estrangeiro lhe atire dinheiro aos joelhos e tenha relações com ela, fora do recinto sagrado. É preciso que o estrangeiro, ao atirar-lhe o dinheiro, diga-lhe: “Invoco a deusa Milita” (os assírios dão a Vênus o nome de Milita). Por muito módica que seja a soma, o estrangeiro não encontrará recusa; a lei proíbe tal coisa, pois o dinheiro se torna sagrado. A mulher segue o primeiro que lhe atira dinheiro, pois não pode recusar quem quer que o faça. Finalmente, depois de haver-se desobrigado do dever para com a deusa, entregando-se ao forasteiro, regressa ao lar. Depois disso, ela não mais se deixa seduzir por dinheiro algum. As que possuem um belo corpo ou um belo rosto não fazem longa permanência no templo, mas as feias esperam, às vezes, três ou quatro anos, antes que possam cumprir a lei. Costume mais ou menos semelhante observa-se em certos lugares da ilha de Chipre”[14]
 
Ele também descreve uma ocasião dramática em que os babilônicos assassinaram a sangue frio quase todas as mulheres do povo, apenas para que suas provisões durassem mais enquanto continuava o cerco dos persas:
 
“Enquanto a esquadra persa se dirigia para Samos, os babilônicos levaram a efeito a revolta que há muito vinham preparando. Durante o reinado do mago e a insurreição dos sete persas, aproveitaram-se das perturbações reinantes, tomando todas as providências para sustentar um cerco prolongado, sem que os persas se apercebessem disso. Colocando-se abertamente contra o jugo do estrangeiro, tomaram as seguintes medidas: de todas as mulheres que se encontravam na Babilônia, cada homem, pondo de parte a mãe, não reservaria senão a que mais amasse. Quanto às outras, reuni-las-iam em determinado lugar e as estrangulariam. Aquela que cada homem reservasse para si ficaria na obrigação de preparar-lhe a comida. Assim foi feito, sendo sacrificadas todas as outras mulheres, a fim de poupar as provisões”[15]
 
Esse ato horrendo e covarde não adiantou muita coisa, já que os persas conquistaram a cidade assim mesmo. Heródoto afirma que o rei persa precisou ordenar que as nações vizinhas cedessem mulheres à Babilônia, já que os babilônicos haviam estrangulado suas próprias companheiras:
 
“Foi assim que Babilônia caiu pela segunda vez em poder dos persas. Dario mandou crucificar cerca de três mil homens entre os mais ilustres da Babilônia. Aos demais, permitiram continuarem habitando a cidade como antes, dando-lhes mulheres para que a repovoassem, pois os babilônicos, como dissemos atrás, tinham estrangulado a maior parte das suas companheiras, a fim de poupar provisões. Ordenou aos povos vizinhos que enviassem mulheres à Babilônia, e cada nação tinha de contribuir com um certo número delas. Ao todo, para ali se encaminharam cinquenta mil mulheres, das quais descendem os babilônicos de hoje”[16]
 
Só um povo superava os babilônicos em matéria de crueldade, especialmente contra as mulheres: os assírios, de quem cabe falar agora.
 
 
 O Código de Assura
 
De todos os códigos jurídicos da Antiguidade, nenhum era tão brutal quanto o dos assírios, conhecidos por sua violência e desumanidade. O Código de Assura, também conhecido como “Código dos Assírios”, foi redigido em algum momento entre 1450 e 1250 a.C, no Médio Império Assírio, e era particularmente cruel com as mulheres. Uma das leis, que era praticamente uma “Maria da Penha” ao contrário, dizia que “se uma mulher levantar a mão contra um homem, eles a processarão; 30 minas de chumbo ela deve pagar, 20 golpes eles devem infligir nela”[17].
 
A punição era ainda maior para a mulher que ferisse o testículo de um homem:
 
“Se uma mulher em uma briga ferir o testículo de um homem, um de seus dedos será cortado. E se um médico o amarrar e o outro testículo que está ao lado dele for infectado por isso, ou sofrer dano; ou em uma briga ela ferir o outro testículo, eles devem destruir seus dois olhos” (Código de Assura, 3)
 
Não só a mulher podia ser golpeada ou mutilada a mando de um juiz, como o próprio marido podia espancá-la quando e como quisesse. O código é bem direto quando diz que “um homem pode bater em sua esposa, puxar seus cabelos, machucar ou furar sua orelha. Ele não comete nenhum crime com isso”[18]. Se um homem e uma mulher cometessem adultério, não havia penalidade para o homem, e a mulher estava sujeita a qualquer penalidade que seu marido lhe impusesse (o que inclui a morte):
 
“Se um homem tiver relações com a esposa de um homem por vontade dela, não há penalidade para esse homem. O homem aplicará à mulher, sua esposa, a penalidade que desejar” (Código de Assura, 9)
 
“Crimes” imaginários dos mais banais, como uma serva andar na rua usando véu, eram punidos dessa maneira:
 
“Se as mulheres de um homem ou as filhas de um homem saírem à rua, suas cabeças devem ser cobertas. A prostituta não deve usar véu. As servas não devem usar véu. As prostitutas e as servas com véus terão suas roupas apreendidas e 50 golpes infligidos sobre elas e betume derramado em suas cabeças” (Código de Assura, 17)
 
Ao mesmo tempo em que uma mulher sofria 50 golpes e mais betume derramado na cabeça por algo tão trivial como o uso do véu, a pena para um homem que ferisse a esposa de outro homem de modo a causar um aborto era meramente uma compensação em dinheiro:
 
“Se um homem ferir a esposa de um homem, em seu primeiro estágio de gravidez, e fazer com que ela deixe cair o que está nela, é um crime; dois talentos de chumbo ele deve pagar” (Código de Assura, 20)
 
Note que essa pena era para aquele que ferisse a esposa de outro homem, e não sua própria esposa, que era sua propriedade pessoal e por isso podia fazer o que quisesse com ela. Espancar a esposa de outro homem era um crime não porque a mulher fosse protegida, mas porque se tratava de uma violação de propriedade. E, mesmo nestes casos, a pena não podia ser mais branda, o que indica que era uma propriedade das menos valiosas. Isso explica por que, de forma inacreditável e chocante, o estuprador passava impune se estuprasse uma mulher solteira, só sendo punido se estuprasse uma casada:
 
“Se um homem tiver relações com a mulher de um homem, quer numa estalagem, quer no caminho, sabendo que ela é mulher de um homem, conforme o homem de quem ela é mulher mandar fazer, farão ao adúltero. Se não sabendo que ela é esposa de um homem, ele a estupra, o adúltero fica livre. O homem deve processar sua esposa, fazendo com ela o que quiser” (Código de Assura, 7)
 
Mais grave do que o estupro de uma mulher solteira ser legalmente permitido, para a mulher casada o estupro era ainda pior, pois ela ainda podia ser castigada pelo marido por ter sofrido o estupro(!), como fica claro na parte que diz que «o homem deve processar sua esposa, fazendo com ela o que quiser». Não bastasse os traumas do estupro, ainda teria que suportar os açoites, mutilações ou algo ainda pior por parte do marido, como se ela fosse culpada por ser vítima de estupro.
 
Como Copan observa, nas leis da Assíria existia até mesmo casos em que a “punição” para o estuprador era ter sua própria esposa estuprada também, algo parecido com o que se fazia para compensar animais feridos ou bens danificados:
 
Por cometer certos crimes, os homens teriam que desistir de sua esposa, filha, boi ou escrava – uma indicação clara de que uma mulher era frequentemente considerada propriedade de um homem. As leis da Assíria central puniam não um estuprador, mas a esposa de um estuprador e até permitiam que ela fosse estuprada por uma gangue.[19]
 
Não só o estupro, mas qualquer crime, delito ou dívidas do marido tinha que ser suportado pela mulher, como se ela própria os tivesse cometido (e isso se aplicava mesmo se ela ainda estivesse morando na casa dos pais):
 
“Se uma mulher estiver morando na casa do pai, mas foi dada ao marido, quer ela tenha sido levada para a casa do marido ou não, todas as dívidas, delitos e crimes do marido ela deve suportar como se ela também os cometeu. Da mesma forma, se ela estiver morando com seu marido, todos os crimes dele ela também suportará” (Código de Assura, 14)
 
O código também é um dos que colocam a mulher abaixo dos filhos na hierarquia do lar, os quais ficavam com qualquer presente que o marido tivesse dado a ela antes de morrer: “Se uma mulher estiver morando na casa de seu pai, e seu marido tiver morrido, qualquer presente que seu marido lhe deu – se houver filhos de seu marido, eles a receberão. Se não houver filhos do marido, ela o recebe”[20]. E diferente de outras leis, que pelo menos previam alguma compensação para a mulher abandonada no divórcio, na Assíria ela era mandada embora com uma mão na frente e outra atrás:
 
“Se um homem se divorciar de sua esposa, se ele quiser, ele pode dar-lhe algo; se ele não quiser, ele não precisa dar-lhe nada. Ela sairá vazia” 
(Código de Assura, 16)
 
Embora os assírios tenham chegado mais longe que qualquer outro povo em se tratando do desprezo à mulher, eles exemplificam bem como a mulher era vista essencialmente como uma propriedade do marido no mundo antigo. O que se discutia não era se a mulher era propriedade, mas até que ponto o homem podia fazer o que quisesse com o que era seu – o que era mais amplo em algumas sociedades em relação a outras.
 
 
 O Código de Nesilim
 
“Nesilim” era o nome que os hititas costumavam dar a si mesmos. Eles também habitavam na região da Mesopotâmia, mais especificamente onde hoje é a Turquia. Seu código de leis, conhecido como “Código de Nesilim”, é datado entre 1650 e 1500 a.C. Embora um pouco menos cruel que o código dos assírios, nele também vemos injustiças e absurdos contra as mulheres. Uma das leis determina que o salário para o homem que trabalha na terra é de «trinta bicadas de cevada», enquanto a mulher ganha apenas doze[21].
 
Outra lei, muito mais repulsiva, autoriza o homem a abusar de várias escravas diferentes: “Se um homem livre pegar escravas, ora uma, ora outra, não há punição pela relação sexual”[22]. Os hititas também toleravam o estupro de uma mulher livre quando praticado dentro de casa, presumindo que a culpa era sempre da mulher: “Se um homem estuprar uma mulher na montanha, é um erro do homem, ele deve morrer. Mas se ele a estuprar em casa, a culpa é da mulher, a mulher deve morrer. Se o marido os encontra e depois os mata, não há como punir o marido”[23].
 
Como se vê, não bastasse ter sido estuprada, a mulher ainda era condenada à morte (pelo menos nessa lei o estuprador também podia ser morto, o que não é muito consolador no fim das contas). O valor da mulher é ilustrado na lei que determinava que a punição por agredir uma grávida tão forte a ponto de causar um aborto era de dez meios siclos de prata, se estivesse no décimo mês de gravidez[24]. Para efeitos de comparação, a pena por ser pego em posse de um escravo fugitivo era de 50 meios siclos de prata[25], ou seja, cinco vezes mais que a pena por espancar uma mulher e causar a morte de seu bebê quase nascido.
 
Considere ainda que mesmo essa pena branda só existia por ter causado o aborto, não pela agressão à mulher em si – tanto é que a pena caía para cinco meios siclos de prata quando a mulher agredida estava no quinto mês de gravidez. Parte nenhuma do código prescreve qualquer pena para agressores de mulheres não-grávidas, ou agressores de mulheres grávidas que não chegaram a ocasionar o aborto. A conclusão que chegamos é que a vida do feto tinha pouco valor, e a da mulher nenhuma.

Por Cristo e por Seu Reino,
Lucas Banzoli (youtube.com/LucasBanzoli)

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[1] WINK, Walter. Engaging the Powers: discernment and resistance in a world of domination. Minneapolis: Fortress Press, 1992, p. 40.
[2] FRENCH, Marilyn. From Eve to Dawn: a history of women. New York: The City University of New York, 2008, p. 100.
[3] Código de Ur-Namu, 7.
[4] COPAN, Paul. Is God a Moral Monster? Making sense of the Old Testament God. Michigan: Baker Books, 2011, p. 100-101.
[5] Código de Esnuna, 28.
[6] Código de Hamurabi, 110.
[7] Código de Hamurabi, 132.
[8] MUSS-ARNOLT, William. “Some Babylonian Laws”. In: Assyrian and Babylonian Literature: Selected Transactions, With a Critical Introduction (ed. Robert Francis Harper). New York: D. Appleton & Company, 1904, p. 445.
[9] BARTON, George Aaron. “Contracts”. In: Assyrian and Babylonian Literature: Selected Transactions, with a Critical Introduction (ed. Robert Francis Harper). New York: D. Appleton & Company, 1904, p. 256-276.
[10] ibid.
[11] PRICE, Massoume. Women's Lives in Ancient Persia. Disponível em: <https://www.parstimes.com/women/women_ancient_persia.html>. Acesso em: 27/02/2023.
[12] HERÓDOTO. História. Livro I, 196.
[13] HERÓDOTO. História. Livro I, 196.
[14] HERÓDOTO. História. Livro I, 199.
[15] HERÓDOTO. História. Livro III, 150.
[16] HERÓDOTO. História. Livro III, 159.
[17] Código de Assura, 2.
[18] Código de Assura, 25.
[19] COPAN, Paul. Is God a Moral Monster? Making sense of the Old Testament God. Michigan: Baker Books, 2011, p. 138.
[20] Código de Assura, 13.
[21] Código de Nesilim, 158.
[22] Código de Nesilim, 194.
[23] Código de Nesilim, 197.
[24] Código de Nesilim, 17.
[25] Código de Nesilim, 24.

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11 comentários:

  1. Eu já estava com saudade das suas postagens continue com o bom trabalho.

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  2. Eu entendi o seu argumento tão logo eu percebi a citação do livro do Paul Copan, é bem óbvio que as leis dos povos pós-diluvianos eram leis nojentas, abjetas, imagina então dos pré-diluvianos? Acontece que em comparação às leis desses povos, a Lei que YHWH (Louvado Seja) deu era muito superior, ainda que uma Lei provisória e baseada na aspereza do coração daquele povo, a Lei de Moshe era basicamente e literalmente um Oásis no deserto, já que foi a Água dada no Deserto.

    É até curioso que não parece haver nenhum paralelo entre a Torah e essas leis corrompidas e injustas, até mesmo em questão do tratamento dado às mulheres, que eram muito mais respeitadas e protegidas. Nem precisamos falar da Lei dada pelo Verbo, pelo Logos, que aí já é covardia.

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  3. Lucas, é verdade que você não crê que Jesus foi Deus enquanto esteve na terra? vi alguém falando que você disse isso. Eu acredito que Jesus só abdicou dos poderes celestes mas os seus atributos enquanto Deus sempre estiveram com Ele.

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    1. Jesus nunca deixou de ser Deus, mas era Deus encarnado (um homem, e não um Deus em forma de Deus). Eu não sei o que você quer dizer com "abdicar dos poderes celestiais" mas os "poderes celestiais" dizem respeito justamente aos atributos da divindade, os quais Jesus não usou nenhum (embora os tivesse por direito).

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  4. Fala, Lucas. Gostei muito do artigo.

    Tu podes me recomendar livros/pdfs que sejam contra o pecado original Agostiniano? Estou falando do entendimento que já nascemos pecadores, um bebê de um dia de idade por exemplo que no entendimento deles ja é pecador (não me refiro a sua inata inclinação para o mal).

    Com as ideias daquele seu artigo sobre os bebês e deficientes mentais que chegam a morrer antes da idade da razão.

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    1. Oi Bruno, na Teologia Sistemática do Charles Finney ele fala bastante sobre isso.

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  5. Lucas, sobre o Antigo Oriente proximo, eu gostaria de saber: oq é a cabala? Qual a relação dela com o Antigo Testamento? Um cristão ou um Judeu pode apreender coisas da Cabala ?

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    1. A Cabala é um tipo de misticismo judaico praticado por gente esotérica (a grosso modo, é mais ou menos o equivalente judaico ao que o gnosticismo é pro meio cristão, só que muito mais baseado em numerologia que tem pouco ou nada a ver com a Bíblia). Um cristão pode aprender coisas da Cabala no mesmo sentido em que pode aprender coisas sobre o espiritismo, catolicismo, ateísmo e tudo mais, desde que "aprender" seja diferente de "praticar" (você aprende pra ver o quanto aquilo é estúpido, não pra se tornar um deles). Embora a meu ver isso seja tão dispensável que é pura perda de tempo gastar energia com isso. O que Deus revelou Ele não revelou pra uma minoria de místicos com um ou dois parafusos a menos; Ele revelou a toda a humanidade de forma simples, compreensível e inteligível.

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  6. Olá, Banzoli; Tenho uma pergunta, porém ela não tem nada a ver com o post em questão; Estou comentando aqui somente por ser o post mais recente; Enfim, a minha dúvida é:

    "Como reconciliar o relato de Mateus sobre  passagem da ressurreição da filha de Jairo com o de Marcos e Lucas?"

    Vou explicar: diversos apologetas já se dispuseram a resolver certas "incongruências" dessa passagem, e dizem que Mateus apenas condensou o evento o máximo que pôde e colocou as palavrqs do mensageiro "sua filha morreu", na boca de Jairo; E essa explicação é coerente; Faz sentido; Principalmente levando em consideração o estilo lacônico de Mateus quando se trata de Milagres; Porém, embora respondam isso, esses apologetas ignoram as principais e mais difíceis "discrepâncias" dessa passagem, a saber: o fato de Mateus ter dito que Jairo se apresentou a Jesus no momento em que Jesus falava com os discípulos de João Batista a respeito do Jejum, sendo que Marcos e Lucas dizem que Jesus estava na praia cercado pela multidão; ou o fato de Mateus dizer que a mulher com hemorragia ficou curada após Jesus lhe falar, sendo que em Marcos e em Lucas é dito que ela ficou curada imediatamente após tocar em Jesus.

      Qual solução seria possível para essas "discrepâncias"? Não encontro ninguém que fale a respeito disso.

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    1. Mateus diz que isso aconteceu depois que Jesus "entrou num barco, atravessou o mar e foi para a sua própria cidade" (9:1), e Marcos que isso aconteceu depois que Jesus "voltou de barco para a outra margem" (5:21), pra mim eles estão falando do mesmo acontecimento sim. Mateus não diz que Jesus estava só com os discípulos de João Batista, ele menciona a multidão também (no verso 8), então dá pra inferir que ambos estavam ali na ocasião. Marcos também traz a frase "a sua fé a curou" (5:34), mesmo após dizer que a mulher já estava curada desde o momento em que tocou o manto de Jesus, então quando em Mateus Jesus diz a mesma coisa e ele acrescenta que "desde aquele instante a mulher ficou curada" (v. 22), o "ficou" aqui deve ser entendido no sentido de "permaneceu", ou seja, que a mulher continuou curada daquele momento em diante (porque a hemorragia havia sido definitivamente curada e nunca mais voltaria).

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