22 de dezembro de 2022

16 Mateus 1:25 não refuta a virgindade perpétua de Maria? Analisando os 4 "textos salvadores" de Dave Armstrong

 

Nota introdutória
 
Dave Armstrong é um famoso apologista tridentino norte-americano conhecido por passar o dia inteiro atacando os protestantes na internet em vez de arrumar um trabalho, aproveitando o seu imenso tempo livre para escrever infindáveis artigos que seus oponentes não terão tempo de responder até ganhá-los pelo cansaço e cantar vitória (não à toa, sempre fugiu de debates ao vivo, onde o oponente teria o mesmo tempo que ele e ele não teria como correr para o Google). Desde o início do ano criou uma verdadeira obsessão pela minha pessoa e escreveu mais de 50 artigos “against Lucas Banzoli” antes que eu respondesse qualquer coisa. Sempre com uma linguagem hostil e provocadora, apela ainda a calúnias e difamações típicas da apologética católica (tais como que eu sou “não-teísta” e que “nego a divindade de Cristo”).
 
Depois de passar meses quase implorando pela minha atenção decidi respondê-lo com artigos que refutam linha por linha os seus impropérios, e descobri que, quando refutado, ele responde a um texto de 30 páginas com artigos de 5 páginas onde repete tudo o que já foi refutado e ignora todos os argumentos mais fortes. É superficial, fraco e desqualificado que só continua sendo respondido porque fiz das respostas ao Dave o meu novo esporte favorito (e porque estes artigos serão compilados para um novo livro de respostas às acusações papistas mais comuns, e nada melhor do que demonstrá-las na prática com alguém que se gaba por ter mais de 4 mil artigos “refutando” o protestantismo).
 
(Você pode ver minhas outras refutações ao Dave neste índice)
 
***
 
Um dos primeiros artigos do meu antigo blog, escrito em 16 de agosto de 2012 (este aqui), foi sobre o texto que prova definitivamente que Maria teve outros filhos além de Jesus, onde lemos que José “não a conheceu até que deu à luz seu filho, o primogênito; e pôs-lhe por nome Jesus” (Mt 1:25). Uma vez que “conhecer” é um eufemismo semita muito comum neste contexto para indicar uma relação sexual (cf. Gn 4:1), é evidente que Maria não foi “sempre virgem”, mas virgem até o nascimento de Jesus. Dez anos depois, Dave escreveu este artigo onde tenta argumentar que o «até que» não indica que José “conheceu” Maria depois disso, já que, do contrário, teria que admitir que a doutrina que ele é obrigado a defender para ser católico é uma fraude.
 
Para tanto, ele seleciona quatro versículos no NT que supostamente provam a continuidade depois do “até”, o que seria suficiente para dizer que o mesmo se aplica a Mateus 1:25 (e que, portanto, José não “conheceu” Maria nem até ela dar à luz a Jesus, e nem depois). Ao longo de todo o artigo, Dave se orgulha destes seus quatro versículos salvadores, que pegam qualquer protestante de surpresa. O problema é que nenhum deles têm uma construção análoga à de Mateus 1:25 (com o héos hou e precedidos por uma partícula negativa, como veremos a seguir), e, mesmo se fosse o caso, seriam uma gota d’água em meio a um oceano de exemplos contrários.
 
Infelizmente, Dave não está a par disso, não só por não saber grego, mas por ser preguiçoso demais para consultar qualquer Bíblia, léxico, concordância, interlinear ou dicionário de grego. Dave é um retrato invejável da apologética católica como um todo, sempre rasa e superficial, que evita ao máximo tratar as questões em detalhes e que foge de qualquer análise séria dos textos. Os quatro textos que ele cita como um paralelo a Mateus 1:25 são: (1) Atos 8:40, (2) Atos 25:21, (3) 1ª Coríntios 15:25 e (4) 1ª Timóteo 4:13. Logo de cara, percebemos que são apenas quatro textos de um total de 146 ocorrências de héos no NT, o que significa um percentual de 2,7%. Na verdade, Dave não sabe que no terceiro texto sequer consta héos no grego, o que abaixa o percentual para 2,0% (ou 1 em 50).
 
Como veremos, mesmo esses outros três textos passam longe de transmitir o sentido que ele pretende, mas vamos fazer de conta que sim, e que temos realmente três textos dentro de um total de 147 onde há continuidade após o “até”. O que isso significaria? Significa que para o dogma católico se sustentar, ele depende da interpretação de um versículo que tem 2% de chances de ter o sentido que Dave pretende (e precisa) que tenha. Ou, para colocar de outro modo, que Roma elevou ao patamar de dogma (um ponto de fé essencial, indiscutível e necessário de se crer para a salvação) uma doutrina cuja chance de estar correta apenas por este versículo é de 1 em 50 (e que abaixa mais ainda quando consideramos outros versículos). Isso é quase como apostar na loteria, com a pequena diferença de estar apostando sua salvação.
 
Se 1 em 50 não parece muito razoável – embora Dave se orgulhe desses quatro versículos, que é mais do que ele imaginava encontrar –, a coisa fica muito mais feia quando vamos ao grego e descobrimos que nenhum desses versículos são realmente análogos à interpretação que Dave faz de Mateus 1:25, precisamente pelos dois detalhes que pontuei acima. Note como em Mateus 1:25 a ACF traduz por «até que», que é a tradução para o grego héos hou:
 
Mateus 1:25 no grego:
kai ouk eginōsken autēn heōs hou eteken huion kai ekalesen to onoma autou Iēsoun
 
Compare com os outros versículos citados por Dave, onde, à exceção de Atos 25:21, aparece apenas o héos, desacompanhado do hou:
 
Atos 8:40 no grego:
Philippos de heurethē eis Azōton kai dierchomenos euēngelizeto tas poleis pasas heōs tou elthein auton eis Kaisareian
 
Atos 25:21 no grego:
tou de Paulou epikalesamenou tērēthēnai auton eis tēn tou Sebastou diagnōsin ekeleusa tēreisthai auton heōs hou anapempsō auton pros Kaisara
 
1ª Timóteo 4:13 no grego:
heōs erchomai proseche tē anagnōsei tē paraklēsei tē didaskalia
 
Essa mudança é imperceptível para quem lê a Bíblia apenas nas traduções em inglês, como é o caso de Dave, já que as Bíblias em inglês traduzem todos esses versículos do mesmo jeito (com o “until”, apenas). Por isso é tão importante consultarmos o grego antes de fazermos a exegese de um texto, o que evitaria passar vergonha citando como textos análogos textos que não são. Mas isso não é nada em comparado à gafe que ele comete em relação a 1ª Coríntios 15:25, onde o próprio heōs está ausente!
 
1ª Coríntios 15:25 no grego:
dei gar auton basileuein basileuein achri hou thē pantas tous echthrous hypo tous podas autou
 
Em vez de heōs, o advérbio usado aqui é achri, o que Dave saberia se pelo menos se desse ao trabalho de consultar o grego antes de escrever seu artigo, baseado apenas e unicamente nas traduções em inglês às quais ele tem acesso. Em suma: dos quatro textos citados, apenas um (At 25:21) pode ser usado como um paralelo em relação a Mateus 1:25, e mesmo assim somente parcialmente, pela ausência da partícula de negação (falarei mais sobre isso em um instante). Curiosamente, Atos 25:21 é claramente um caso onde Dave manipula a interpretação, exatamente como faz com Mateus 1:25. Vejamos o texto em questão:
 
“E, apelando Paulo para que fosse reservado ao conhecimento de Augusto, mandei que o guardassem até que o envie a César” (Atos 25:21)
 
Agora veja como Dave interpreta o texto da forma mais burramente possível:
 
Paulo, portanto, não foi mantido na prisão depois que conheceu César, porque “até” está nesta passagem? Não. Ele deveria ser mantido sob custódia durante a viagem (Atos 27:1) e também quando chegasse a Roma (Atos 29:16). Mas Lucas nos informou que há “evidências bíblicas esmagadoras” de que “'até' marca o fim de um evento, designando seu limite”. Então, de acordo com ele, Paulo deve ter sido libertado. Não!
 
Dave está tão atordoado em seus pensamentos cada vez mais caóticos após levar tanta porrada que deu até uma referência bíblica que não existe(!), ao citar “Atos 29:16” quando o livro de Atos termina no capítulo 28 (não basta terem acrescentado capítulos a Daniel e a Ester, agora querem acrescentar a Atos também). Para piorar, o que aconteceu com Paulo foi exatamente o que Dave diz que não aconteceu, já que ele realmente não foi “mantido na prisão” depois que foi transferido a Roma. Embora ainda estivesse sub custódia, o texto é claro em dizer que Paulo passou a morar por conta própria numa casa que ele mesmo alugou, e não mais numa prisão:
 
“Quando chegamos a Roma, Paulo recebeu permissão para morar por conta própria, sob a custódia de um soldado” (Atos 28:16)
 
“Por dois anos inteiros Paulo permaneceu na casa que havia alugado, e recebia a todos os que iam vê-lo. Pregava o Reino de Deus e ensinava a respeito do Senhor Jesus Cristo, abertamente e sem impedimento algum(Atos 28:30-31)
 
Note que, enquanto nos capítulos anteriores Paulo estava literalmente preso (e escreve quatro cartas da prisão), aqui Paulo já está morando numa casa que ele mesmo alugou, e tinha total liberdade de ir e vir (Lucas faz questão de acentuar que ele pregava «abertamente e sem impedimento algum», caso não tivesse ficado claro o suficiente). Ele nem mesmo estava em “prisão domiciliar”, porque no capítulo inteiro vemos Paulo se hospedando na casa de outros irmãos (vs. 7, 14), pregando nas praças (v. 15) e pregando para os líderes dos judeus (v. 17), presumivelmente numa sinagoga.
 
Então, sim: Paulo estava “guardado” (numa cela na prisão) antes de ser enviado a César, mas não mais quando chegou lá. Embora isso seja facilmente perceptível a qualquer criança com um QI levemente superior ao de um mico-leão-dourado, Dave precisa distorcer este texto grosseiramente para forçar o sentido oposto do mesmo, só porque este é o único jeito de fazê-lo estar de acordo com a sua interpretação (igualmente grosseira e burra) de Mateus 1:25.
 
Em resumo: de todos os textos citados por Dave, apenas um apresenta a mesma estrutura (heōs hou) do texto em discussão, e este único texto prega exatamente o sentido da descontinuidade, que Dave tenta argumentar em contrário. Em outras palavras, para distorcer Mateus 1:25, Dave distorce também Atos 25:21, porque acha que distorcendo Atos 25:21 fica mais fácil de distorcer Mateus 1:25 (como se os seus leitores fossem ingênuos o bastante para caírem em duas fraudes no lugar de uma, ao maior estilo Casas Bahia, “pague um e leve dois”). Em todos os outros textos em que heōs hou aparece no NT, incluindo Atos 25:21, o sentido é sempre o da descontinuidade: a ação anterior cessa após o “até que” (heōs hou).
 
Isso acontece 17 vezes no NT, em textos como esses:
 
“Enquanto desciam do monte, Jesus lhes ordenou: ‘Não contem a ninguém o que vocês viram, até que (heōs hou) o Filho do homem tenha sido ressuscitado dos mortos’” (Mateus 17:9)
 
Será que os discípulos deveriam continuar sem contar o que viram após a ressurreição de Jesus? Leia 2ª Pedro 1:17-18 e descubra por si mesmo.
 
“Eu lhes envio a promessa de meu Pai; mas fiquem na cidade até que (heōs hou) sejam revestidos do poder do alto” (Lucas 24:49)
 
Será que os discípulos deveriam permanecer na cidade mesmo após o revestimento do alto? Leia Atos 1:8 e descubra por si mesmo.
 
“Respondeu-lhe Jesus: Tu darás a tua vida por mim? Na verdade, na verdade te digo que não cantará o galo até que (heōs hou) me tenhas negado três vezes” (João 13:38)
 
Será que o galo continuaria sem cantar depois que Pedro negasse Jesus? Leia João 18:27 e descubra por si mesmo.
 
“Então Paulo, tomando consigo aqueles homens, entrou no dia seguinte no templo, já santificado com eles, anunciando serem já cumpridos os dias da purificação; e ficou ali até que (heōs hou) se oferecesse por cada um deles a oferta” (Atos 21:26)
 
Será que Paulo continuou no templo mesmo após ter cumprido os dias de purificação? Leia Atos 21:30 e descubra por si mesmo.
 
“Pois eu lhes digo que não beberei outra vez do fruto da videira até que (heōs hou) venha o Reino de Deus” (Lucas 22:18)
 
Será que Jesus vai continuar sem beber do fruto da videira mesmo após vir o Reino de Deus? Leia Lucas 14:15 e descubra por si mesmo.
 
“Irado, seu senhor entregou-o aos torturadores, até que (heōs hou) pagasse tudo o que devia” (Mateus 18:34)
 
Será que o homem é torturado mesmo depois de pagar tudo o que devia? Nem os papistas afirmam isso (eles creem que o texto se refere ao purgatório, embora na verdade se refira ao castigo proporcional após a ressurreição, em contraste com o tormento eterno dos imortalistas).
 
“Ou, qual é a mulher que, possuindo dez dracmas e, perdendo uma delas, não acende uma candeia, varre a casa e procura atentamente, até que (heōs hou) a encontre?” (Lucas 15:8)
 
Será que a mulher continuou procurando a moeda após encontrá-la?
 
“Outra parábola lhes disse: O reino dos céus é semelhante ao fermento, que uma mulher toma e introduz em três medidas de farinha, até que (heōs hou) toda a massa ficou fermentada” (Mateus 13:33)
 
Será que a mulher continuou introduzindo o fermento mesmo após a massa estar fermentada?
 
“Na manhã seguinte os judeus tramaram uma conspiração e juraram solenemente que não comeriam nem beberiam até que (heōs hou) matassem Paulo” (Atos 23:12)
 
Será que os judeus tinham jurado não comer nem beber nada mesmo depois que tivessem matado Paulo? Eles tinham aprendido com Jim Jones e feito um juramento suicida?
 
Os exemplos podem ser acumulados aos montões, e todos eles têm uma mesma característica em comum: em cada um deles, sem exceção, o heōs hou implica na descontinuidade da ação. É por isso que o único exemplo de heōs hou que Dave cita em apoio à sua interpretação de Mateus 1:25 é, como vimos, mais um exemplo de descontinuidade, se Dave soubesse ler o texto que cita (e soubesse em que capítulo que fica). Mesmo os outros textos que Dave cita (onde consta só o heōs, ou nem isso) não serviriam para forçar uma simetria com Mateus 1:25, porque a ênfase é totalmente diferente de um texto pro outro. Comecemos com Atos 8:40, que diz:
 
“Mas Filipe veio a achar-se em Azoto; e, passando além, evangelizava todas as cidades até chegar a Cesareia” (Atos 8:40)
 
Dave argumenta que o caso aqui é similar ao de Mt 1:25, porque Filipe continuou pregando após chegar em Cesareia. O que ele não entende é que o «todas as cidades» que o texto se refere não está falando de todas as cidades do mundo todo (o que obviamente Filipe nunca evangelizou), mas de todas as cidades do percurso entre Azoto e Cesareia, como é evidente a qualquer pessoa com pelo menos dois neurônios na cabeça e o texto na mão. E como não há nenhum texto que diga que Filipe voltou para evangelizar aquelas cidades de novo, faz todo o sentido interpretar o texto no sentido da descontinuidade (ou seja, que Filipe pregou naquelas cidades até chegar em Cesareia, mas não pregou mais naquelas cidades depois de chegar em Cesareia).
 
O outro texto que Dave cita é aquele em que nem mesmo consta o heōs, e que por isso nem mesmo precisaria ser abordado, mas mesmo assim vale a pena uma palinha:
 
“Pois é necessário que ele reine até que todos os seus inimigos sejam postos debaixo de seus pés” (1ª Coríntios 15:25)
 
Dave argumenta que Cristo continua reinando após seus inimigos serem postos debaixo dos seus pés, o que é certamente verdade, já que muitos textos bíblicos falam de um reinado eterno de Cristo (como o próprio texto que ele cita, Apocalipse 11:15). Mas o que devemos nos perguntar é se isso se aplica especificamente ao tipo de reinado que o texto se refere, porque o verso em questão está inserido em um contexto maior e mais complexo onde Paulo realmente parece estar transmitindo a ideia de que Cristo entrega o reino ao Pai e se sujeita a Ele. Vejamos o texto em seu contexto maior (misteriosamente omitido por Dave):
 
1ª Coríntios 15
24 Então virá o fim, quando ele entregar o Reino a Deus, o Pai, depois de ter destruído todo domínio, autoridade e poder.
25 Pois é necessário que ele reine até que todos os seus inimigos sejam postos debaixo de seus pés.
26 O último inimigo a ser destruído é a morte.
27 Porque ele "tudo sujeitou debaixo de seus pés". Ora, quando se diz que "tudo" lhe foi sujeito, fica claro que isso não inclui o próprio Deus, que tudo submeteu a Cristo.
28 Quando, porém, tudo lhe estiver sujeito, então o próprio Filho se sujeitará àquele que todas as coisas lhe sujeitou, a fim de que Deus seja tudo em todos.
 
Observe que o raciocínio de Paulo é realmente compatível com a ideia do “fim” do reinado de Cristo, já que a linguagem que Paulo usa aqui dá a entender que o reino de Cristo é entregue ao Pai (como se já não fosse do Pai), quando então o próprio Filho se sujeitará a Ele (como se já não fosse sujeito). Estes são possivelmente os versos mais difíceis de toda a Bíblia, e os teólogos se debruçam até hoje com múltiplas interpretações a respeito. Se nem mesmo Roma que diz ser uma intérprete infalível das Escrituras e que está aí “há dois mil anos” tem uma interpretação oficial desses versículos, muito menos eu tenho a pretensão de colocar um ponto final à discussão. No entanto, está claro que Paulo não está falando do reinado de Cristo no mesmo sentido de textos como Ap 11:15.
 
Enquanto em Ap 11:15 a ênfase está no reinado literal de Cristo na terra (durante o milênio e no estado eterno), como Aquele que receberá a glória dos reis da terra (Ap 21:23-24), Paulo não parece estar falando disso no contexto de 1Co 15:25, que fala da autoridade que Cristo transfere ao Pai após destronar (espiritualmente) todas as forças do mal. É neste sentido que há a descontinuidade, ressaltada com ainda mais força nos versos 24 e 27-28. Há quem interprete que o “reinado” que o texto se refere diz respeito ao reinado espiritual da Igreja, que é o corpo de Cristo (Ef 5:23). Uma vez que a Igreja cumpre a sua missão, ela sai de cena, devolvendo a Deus toda a autoridade que Ele a deu para cumprir sua missão na terra.
 
Então, não há nenhuma contradição entre 1Co 15:25 e Ap 11:15, uma vez que o primeiro texto se refere ao reinado espiritual que Cristo exerce neste momento através da Igreja, enquanto Ap 11:15 se refere ao reinado literal que Cristo exercerá no futuro, quando estabelecer o reino físico na terra. O primeiro, como Paulo assinala, é temporário, e o segundo é eterno. Assim, nem mesmo 1ª Coríntios 15:25 pode ser corretamente usado por Dave, não só por nem sequer ter o heōs de Mateus 1:25, mas porque o advérbio usado aqui em seu lugar (achri) também não passa o sentido de continuidade, quando analisamos o contexto cuidadosamente.
 
Por fim, o último texto usado por Dave é 1ª Timóteo 4:13, onde Paulo diz a Timóteo:
 
“Até a minha chegada, dedique-se à leitura pública da Escritura, à exortação e ao ensino” (1ª Timóteo 4:13)
 
Dave argumenta que Timóteo deveria continuar lendo, exortando e ensinando após a chegada de Paulo, e que, portanto, o texto aqui é análogo à interpretação católica de Mateus 1:25. Já vimos que aqui não consta o heōs hou no grego, mas apenas heōs, o que já faz com que não sejam textos análogos. Mas há uma outra diferença crucial: Mateus 1:25 é uma negação, enquanto 1ª Timóteo 4:13 é uma afirmação positiva. É relativamente mais comum usarmos o “até” em contextos de afirmações positivas desse tipo, mas nós nunca usamos para negativas.
 
Por exemplo, se eu sou capitão de um time de futebol e lhes digo “até eu chegar, vão aquecendo aí”, a frase em si não carrega necessariamente o sentido de que eles vão deixar de aquecer depois que eu chegar, mas se digo “não aqueçam até que eu chegue”, qualquer um concluirá naturalmente que após eu chegar é pra começar a aquecer. Essa é a diferença entre a afirmação positiva e a negativa envolvendo o “até”. A positiva às vezes pode deixar a questão em aberto, já que a ênfase não recai sobre o momento mas sim sobre a ação, ao passo em que a negativa recai sobre o momento, mais do que sobre a ação.
 
Voltando a Mateus 1:25, note como ali temos uma partícula de negação (ouk) antes do “até que”, tal como no segundo exemplo:
 
“E não a conheceu até que deu à luz seu filho, o primogênito; e pôs-lhe por nome Jesus” (Mateus 1:25)
 
Note como Dave cita como texto análogo um texto que não tem o heōs hou (que acrescenta uma ênfase adicional ao momento) e que não é precedido por uma partícula negativa, em vez de citar como textos análogos os textos que de fato contém o heōs hou e a partícula negativa, como esses aqui:
 
“Na manhã seguinte os judeus tramaram uma conspiração e juraram solenemente que não comeriam nem beberiam até que matassem Paulo” (Atos 23:12)
 
“E, descendo eles do monte, Jesus lhes ordenou, dizendo: A ninguém conteis a visão, até que o Filho do homem seja ressuscitado dentre os mortos” (Mateus 17:9)
 
Dave maliciosamente omite esses versículos do seu artigo, embora sejam estruturalmente idênticos a Mateus 1:25, porque sabe que comprometeriam sua tese. Mas cita em seu favor quatro versículos, dos quais três tem o sentido oposto ao que ele pretende, e o outro não tem nada a ver com Mateus 1:25. Se isso não se chama desonestidade, eu francamente não sei o nome.
 
Como se as coisas não pudessem ficar piores, Gabriel Lopes, neste excelente e aprofundado artigo sobre o tema, acrescenta o importante fato de que o imperfeito ginóskó (traduzido por “conhecer” em Mateus 1:25) é mais forte do que até mesmo um aoristo teria sido, citando Plummer em seu Comentário Exegético do Evangelho de Mateus:
 
"Nem é preciso argumentar que, em tal contexto, 'ele não costumava' ou 'ele não tinha o hábito de' significa mais do que 'não fazia'. É bem verdade que o aoristo, 'ele só a conheceu', teria sugerido que ela subsequentemente teve filhos com ele. Mas o imperfeito implica isso ainda mais fortemente"
 
Há muitas outras aberrações no artigo de Dave, que eu posso comentar num artigo à parte (basicamente, ele passa metade do texto reclamando que eu uso “argumento do silêncio”, e então usa argumento do silêncio pra refutar meu argumento do silêncio), mas comentá-los aqui misturaria os temas do artigo e eu gostaria de deixar este especificamente sobre Mateus 1:25, para mostrar o quão pobre, rasa, tosca e superficial é a exegese de Dave (que retrata a capacidade de exegese dos apologistas papistas como um todo, que nunca é melhor do que isso).
 
É virtualmente impossível encontrar um artigo católico sério no campo da exegese, porque apologistas como Dave não são exegetas. São panfletários, palpiteiros, proselitistas e amadores que se limitam a copiar argumentos de terceiros e reproduzi-los sem sequer se preocupar em fazer uma pesquisa básica por conta própria sobre o tema em que dissertam. Nenhum deles tem a menor familiaridade com o assunto sobre o qual escrevem, porque o objetivo nunca é chegar à verdade, mas captar o máximo de argumentos que concordem com a sua visão, mesmo que sejam todos miseravelmente ruins.
 
Isso se vê com maestria na análise do texto em questão: Dave se orgulha de ter quatro versículos que são supostamente simétricos com Mateus 1:25, o que lhe daria uma margem de 2% a favor diante de 98% contra, e quando analisamos esses mesmos versículos, vemos que um deles nem mesmo tem o heōs, outros dois não têm o hou e nem são simétricos, e o único que possui simetria com Mateus 1:25 é um onde o sentido exposto é claramente o inverso do que Dave pretende (porque não satisfeito em distorcer Mateus 1:25, também precisava distorcer o outro texto). E quando analisamos os textos onde heōs hou aparece, constatamos um total de 0% que concorda com a interpretação continuísta de Dave, e 100% que discordam.
 
É um caso que qualquer juiz sério daria por vencido sem pensar duas vezes, mas apologistas como Dave continuarão tratando o texto como obscuro e impossível de se fechar uma opinião, não porque haja realmente alguma evidência textual que apoie a interpretação continuísta (de que José não teve relações com Maria nem “até que” Jesus nascesse e nem depois), mas simplesmente porque a constatação óbvia, simples e natural que salta aos olhos de qualquer um ao ler o texto e ao comparar com os textos simétricos é algo que se choca frontalmente com a posição que Dave é obrigado a defender. E entre abraçar a lógica ou o dogma, ele irá sempre escolher o dogma, como um bom discípulo de Inácio de Loyola: “Creio que o branco que eu vejo é preto, se a hierarquia da Igreja assim determinar”.
 
Paz a todos vocês que estão em Cristo.

Por Cristo e por Seu Reino,
Lucas Banzoli (youtube.com/LucasBanzoli)

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16 comentários:

  1. Lucas, excelente como sempre, para mim o auge foi o argumento da consulta de Saul aos mortos do outro artigo. KKKK. Quero aproveitar para te agradecer, você nem sabe a importância que tem na minha vida cristã, oro por você todos os dias, para que sua sabedoria seja aumentada, estou lendo seu livro sobre a Reforma no momento e gostando, excelente como seus artigos, os quais eu já li uma boa parte, enfim, que Deus te abençoe.

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    1. Vlw Priscyla, fico feliz em saber que os artigos/livros tem lhe sido úteis! E obrigado também pelas orações, eu to precisando mesmo (principalmente pra aturar esse tipo de "argumento" sem surtar kkk). Deus lhe abençoe igualmente :)

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  2. Boa noite, Feliz Sábado e Feliz Natal, Lucas.

    Vc tem(ou sabe de algum)artigo, vídeo, etc. que refuta a tal da tradição oral, da perspectiva judaica?

    Exemplo: um judeu fala por exemplo que a Lei foi acompanhada de explicações orais que nunca chegaram aos gentios.

    Deus lhe ilumine.

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    1. Oi Victor, feliz natal (antecipado)! Os judeus tem a Mishná, que é um compilado de tradições orais do Judaísmo (pelo menos nisso eles fazem melhor do que os católicos, que dizem guardar a "tradição oral" sem sequer saber no que a mesma consiste). Mas o próprio Senhor Jesus rebateu a autoridade da tradição oral judaica quando disse:

      Mateus 5:13 – E por que vocês transgridem o mandamento de Deus por causa da tradição de vocês?

      Mateus 15:6 – Assim vocês anulam a palavra de Deus por causa da tradição de vocês.

      Marcos 7:3 – Assim vocês anulam a palavra de Deus, por meio da tradição que vocês mesmos transmitiram. E fazem muitas coisas como essa.

      Marcos 7:6,7 – Bem profetizou Isaías acerca de vós, hipócritas, como está escrito: Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim; em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos de homens.

      Marcos 7:8 – Vocês negligenciam os mandamentos de Deus e se apegam às tradições dos homens.

      Marcos 7:9 – Vocês estão sempre encontrando uma boa maneira para pôr de lado os mandamentos de Deus, a fim de obedecer às suas tradições!

      É digno de nota que todas as vezes que os apóstolos no NT se baseiam na autoridade de alguém, eles nunca usam a tradição judaica como autoridade, mas citam sempre as Escrituras (porque eles sabiam que a Escritura era a fonte de autoridade, e que as tradições orais são facilmente corrompidas).

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  3. Mesmo muitos estudiosos católicos chegam à conclusão de que, do ponto de vista filológico e histórico, os irmãos de Jesus eram realmente irmãos carnais, vou citar pelo menos 3 estudiosos católicos:
    John Paul Meier (do qual recomendo que você leia todo o capítulo dele que aborda este tópico em seu volume 1) conclui:

    "No NT não há um único caso em que, indiscutivelmente, "irmão" significa indiscutivelmente "primo", ou mesmo "meio-irmão", enquanto há abundantes exemplos em que tem o sentido de irmão de sangue (...) Portanto, a visão mais plausível de um ponto de vista puramente filológico e histórico é que os irmãos e irmãs de Jesus eram realmente tais. Pelo menos alguns escritores da Igreja mantiveram esta interpretação dos textos do NT viva até o final do quarto século" [A Marginal Jew, Vol. I, p. 1998, 317-318].

    Jerome H. Neyrey, um estudioso jesuíta e professor do Novo Testamento na Universidade de Notre Dame, argumenta que:

    "a evidência lingüística para "irmão" que significa "primo" é muito escassa (...) Nenhuma evidência lingüística justifica nossa interpretação das passagens evangélicas sobre Jesus como "irmãos" e "irmãs" como seus primos". Portanto, os autores do NT aparentemente entendiam os "irmãos" de Jesus como irmãos de sangue, não como "primos" ou "meio-irmãos". [A enciclopédia HarperCollins do catolicismo, 1995, p. 198-199].

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  4. O estudioso católico José Antonio Pagola também comenta:

    "O termo adelphos usado pelo evangelista normalmente significa "irmão" no sentido estrito, não primo ou parente. De um ponto de vista puramente filológico e histórico, a posição mais comum dos especialistas é que estes são verdadeiros irmãos e irmãs de Jesus. Meier, talvez o mais prestigioso pesquisador católico no momento, após um estudo exaustivo conclui que "a opinião mais provável é que os irmãos e irmãs de Jesus realmente foram" (Jesus Historical Approach, 2007, PPC p. 41).

    José Pagola gerou polêmica por seu livro, de tal forma que o Vaticano teve que intervir. Após um longo processo, o Vaticano admitiu que o livro não continha nenhuma proposta contrária à fé da igreja romana. Entretanto, eles não lhe concederam o imprimatur porque consideram seu livro "perigoso" devido a suas ambigüidades. É surpreendente que para uma declaração tão explícita sobre os irmãos de Jesus, o Vaticano não tenha considerado tais declarações contrárias à "fé da Igreja".

    Dave desperdiça seu tempo, ele não tem que lutar para encontrar apoio bíblico para a virgindade perpétua de Maria, mesmo os estudiosos católicos muito conservadores a reconhecem. Mesmo os próprios estudiosos católicos mais conservadores a reconhecem, como é o caso de Jean-Pierre Lémonon, professor emérito da Faculdade de Teologia da Universidade Católica de Lyon e especialista em Novo Testamento, que admite o seguinte:

    "A virgindade perpétua de Maria deve ser pensada à luz da tradição e da confissão de fé; nenhuma prova de tal convicção deve ser procurada na Escritura". (História de Israel: Parte 3 No Tempo dos Impérios Do Exílio a Antioquia Epifanes (587-175), 2004, p. 65)

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  5. Lucas, o programa que fez a tradução dos comentários que eu compartilhei neste artigo, cometeu um erro. As palavras "meio-irmãos" são na verdade "hermanastro" (ou seja, irmão no sentido jurídico, que não é filho de nenhum dos pais, ou seja, adotado). É por isso que as citações de John Paul Meier e Jerome H. Neyre onde diz "meio-irmãos" é na verdade "hermanastro". Desculpe irmão, erro de tradução.

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  6. Excelente refutação, parabéns! Confesso que estou amando todos esses artigos direcionados ao Dave, no aguardo pelo próximo ansiosamente.
    Os apologistas Católicos não estão do lado da verdade, o catolicismo romano é todo baseado em mentiras, é muita falcatrua pra tentar validar suas crenças Hereges.
    Creio que Maria teve mais filhos sim.

    2- Lucas sei que não tem nada a ver com o assunto mas é uma dúvida que tenho, o concílio de trento foi ecumênico e realizado por algum papa?

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    1. Obrigado pelo apoio!

      O Concílio de Trento é considerado "ecumêmico" apenas pelos católicos romanos, porque eles consideram "ecumênico" qualquer concílio geral realizado por Roma após o cisma 1054 d.C (mesmo sem a presença de bispos orientais, ou seja, mesmo sem ser "universal" ou "ecumênico" de fato). Ou seja, embora tecnicamente falando Trento seja apenas mais um sínodo local como tantos outros, Roma o considera universal porque a partir do Cisma passou a considerar que toda a Igreja universal (="católica") era ela mesma, ou seja, se resumia à Roma apenas (por isso o nome "Igreja Católica Apostólica Romana", como se a Igreja inteira fosse a Igreja Romana, quando em toda a era patrística Roma era apenas uma facção da Igreja universal que se estendia do Oriente ao Ocidente, e com prevalência absoluta do Oriente). Não sei se ficou claro, qualquer coisa é só escrever.

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    2. Ahh entendi perfeitamente agora obrigado!!

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  7. Lucas, é argumentado pelo Rodrigo Silva que esses irmãos de Jesus mencionados nos evangelhos seriam na verdade filhos de José oriundos de outro casamento que ele teve antes de Maria. Pra sustentar esse argumento ele lembra que os evangelhos descrevem os irmãos dando ordens à Jesus, algo que n ocorreria, segundo ele, caso Jesus fosse mais velho, e sendo os irmãos, portanto, mais velhos, deveriam ser de outro relacionamento de José. Outro ponto abordado seria a descrição dada a Maria, quando está se encontrava junto dos irmãos de Jesus, onde sempre é narrado como: "sua Mãe e os seus irmãos" e não "sua mãe e os filhos dela" que seria a expressão idiomática correta caso Maria fosse de fato mãe dos irmãos de Jesus.

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    1. Eu posso fazer um artigo mais aprofundado sobre isso, mas resumidamente: (1) os irmãos nunca "dão ordens" a Jesus, essa deve ser uma leitura imprecisa de João 7:3, onde os irmãos sugerem que Jesus saia de um lugar para ir a outro, mas não exigem ou ordenam; (2) a Bíblia costuma citar alguém pelo referencial mais forte, que no caso é Jesus e não Maria, então é de se esperar que os irmãos de Jesus sejam citados como "irmãos de Jesus (o referencial mais forte) e não como "filhos de Maria" (o referencial mais fraco). Se eu contasse a história de Francisco de Assis, por exemplo, seria natural que eu me referisse aos seus irmãos desse jeito, e não como "filhos de fulana de tal" (já que a história está centrada nele e não na mãe dele); (3) Mateus 1:25 diz que José teve relações com Maria depois do nascimento de Jesus, e naquela época não havia os métodos contraceptivos que existem hoje, de modo que era natural que ela tivesse mais filhos mesmo; (4) seria muito estranho que Maria andasse toda hora com os irmãos de Jesus pra lá e pra cá, se eles fossem apenas primos de Jesus que tivessem suas próprias mães.

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  8. Lucas, al parecer Gabriel López eliminó su página..¿Tienes información del porque lo hizo? Su blog tenía artículos muy buenos y sería una pena que se perdieran.

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    1. Hola, no tengo contacto con él, así que lamentablemente no lo sé.

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