19 de novembro de 2022

4 Os mortos intercedem pelos vivos? (Refutação a Dave Armstrong)


 
Introdução
 
Esta é a minha terceira refutação à cruzada de “refutações” de Dave Armstrong aos meus artigos (as outras duas você pode ler aqui e aqui). Desta vez, o tema escolhido foi a “intercessão dos santos”. No dia 22 de setembro, Dave respondeu a este artigo de 2012, um dos meus primeiros do antigo blog (você pode ver a resposta dele aqui). Antes de comentar o artigo em si, eu preciso começar pela nota introdutória. Isso porque, desde que eu comecei a refutar seus artigos e expor seus argumentos ao ridículo, demonstrando a pavorosa pobreza dos seus textos – que ele, no alto da sua arrogância, julgava serem irrefutáveis e irrespondíveis –, ele simplesmente decidiu mudar a nota introdutória que iniciava os artigos dele, e incluiu isso aqui:
 
Lucas Banzoli é um brasileiro muito ativo, não teísta (que nega que Jesus seja Deus) e não cristão (alegando falsamente ser “evangélico”) dito “apologista”: que escreve bastante contra a Igreja Católica e doutrina católica.
 
Veja só que incrível coincidência: foi só eu começar a demolir o castelinho de areia onde Dave se refugia, que ele logo tratou de elevar o tom e disparar uma série de mentiras, calúnias e difamações literalmente do nada (e logo na introdução de cada artigo). Na incapacidade de refutar qualquer coisa seriamente, o que lhe sobrou como estratégia foram ataques rasteiros, abaixo até mesmo do que fazem os apologistas católicos brasileiros (sim, estes chegam a dizer coisas como “eu vou mijar no caixão da porca da tua mãe” e mesmo assim viram amiguinhos do Dave, mas nem mesmo eles jamais chegaram a dizer que eu sou “não-teísta” e “falsamente evangélico”!).
 
É engraçado que nem mesmo eu tendo escrito dois livros inteiros exatamente para provar o teísmo (“As Provas da Existência de Deus” e “Deus é um Delírio?”, onde refuto o livro todo de Richard Dawkins) foi o suficiente para me livrar da acusação de “não-teísta”, enquanto Dave, que nunca escreveu uma única linha para provar o teísmo e que só se preocupa em atacar evangélicos, se sente na moral de dizer que um apologista que realmente se esforça em combater o ateísmo é que não é teísta. Aparentemente, não importa se alguém se declara teísta e defende o teísmo, o que importa é se tem a chancela de Dave. É tão cômico que é de dar pena.
 
Ainda diz que eu “nego que Jesus seja Deus”, quando eu tenho vários artigos apenas para provar a divindade de Cristo (por exemplo, este aqui, além de uma live de quase 3h com o professor Euler Lopes, um dos maiores estudiosos de grego do Brasil e grande autoridade no assunto). Um dos meus vídeos mais assistidos no youtube é justamente este aqui sobre a divindade de Cristo, que me rendeu inúmeros ataques das testemunhas de Jeová, mais até do que eu costumo receber de católicos. Mas é lógico que nada disso é suficiente para convencer o único juiz supremo capaz de dizer se eu defendo mesmo a divindade de Cristo – Dave Armstrong, é claro.
 
Não satisfeito em mentir sobre eu “negar” o teísmo e a divindade de Cristo, Dave ainda chega ao ponto de dizer que eu “alego falsamente ser evangélico”, como se ele fosse uma espécie de “papa” do protestantismo, que se coloca no direito de dizer quem é evangélico “de verdade” e quem não, quando ele nem mesmo é evangélico e toda a sua pobre vida consiste em atacar os evangélicos literalmente 24h por dia (como ele próprio já admitiu, este é o seu “trabalho”). Eu suponho que isso seja por eu negar a imortalidade da alma, o que só mostra o quão fraco é o conhecimento de Dave sobre o protestantismo, pois se negar a imortalidade da alma é ser “falsamente evangélico”, então até mesmo Lutero era um “falso evangélico”, e Dave deveria parar de citá-lo como um protestante em seu blog!
 
Espero que eu não seja excomungado do protestantismo pelo papa Dave ao dizer isso, mas Dave pensa que a imortalidade da alma é uma doutrina tão vital no protestantismo quanto o é no catolicismo, quando ela nem mesmo aparece em muitos dos credos e confissões protestantes mais importantes, como os 39 Artigos da Igreja Anglicana, os 25 Artigos de Fé da Igreja Metodista ou a imensa Confissão de Augsburgo de 1530, redigida por Melâncton e aprovada pelo próprio Lutero (e embora apareça em outras várias confissões, nunca é citada como uma doutrina essencial para ser considerado evangélico).
 
Qualquer discussão sobre o assunto deveria ter acabado após o famoso Pacto de Lausana (1974), o maior congresso mundial de igrejas evangélicas da história, que se reuniu para definir o que é necessário crer para ser considerado “evangélico”. Apesar da intransigência de uma minoria, decidiu-se por maioria de votos que a imortalidade da alma não é uma doutrina essencial, e que os mortalistas são tão legitimamente evangélicos quanto os imortalistas. Por isso, mesmo que a maioria dos evangélicos ainda seja imortalista – em número cada vez menor e mais hesitante –, nenhum dos muitos com os quais eu já debati o assunto me acusou de não ser evangélico (veja os meus debates aqui); nem mesmo os próprios católicos me acusam disso (excetuando o papa Dave, é claro).
 
Infelizmente, é muito mais fácil disparar mentiras e difamações sobre o seu oponente, pintando-o como um monstro anticristão da pior espécie, do que lidar seriamente com os argumentos e refutá-los. Dave se deixou tomar pelo ódio ao ver os artigos que julgava tão poderosos serem expostos ao ridículo por um rapaz com metade da sua idade, e viu que a única alternativa seria baixar o nível do debate, exatamente como os apologistas católicos brasileiros sempre fizeram (ainda que com menos palavrões, pelo menos até o momento). É triste que alguém com mais de três décadas de apologética ainda precise apelar a esses golpes baixos para impressionar seus leitores, mesmo que seja um tanto compreensível, já que para alguém tão arrogante que se orgulha de ter “mais de 4.000 artigos” não deve ser fácil passar vergonha desse jeito.
 
 
O que Dave argumenta
 
Lucas vai argumentar aqui com base em sua falsa crença no sono da alma: uma heresia que refutei completamente.
 
Na verdade, não é preciso crer no tal “sono da alma” para refutar a doutrina da “intercessão dos santos”, nem o meu artigo de 2012 é focado nisso. Para tanto, basta mostrar que, mesmo se os mortos estivessem vivos no além, eles não teriam conhecimento do que se passa na terra ou um grau de consciência suficiente para interceder pelos vivos (isso sem falar de inúmeros outros problemas, como a falta de onipresença ou onisciência para saber o que todos oram em todo lugar e interceder por cada um deles ao mesmo tempo, o que faria deles deuses e não homens).
 
Mesmo assim, é engraçado Dave dizer que “refutou completamente” a “heresia” mortalista, quando recentemente o mesmo admitiu que só leu 170 páginas do meu livro de 1.900 páginas sobre o tema e só escreveu 6 artigos “refutando” essas 170 páginas (artigos que não somam 6 páginas cada, que ignoram quase todos os argumentos tratados e que seleciona arbitrariamente uma minoria para “refutar”, sem saber que os argumentos usados já foram esmigalhados mais à frente no livro que ele refuta sem ler). Um exemplo é seu hilário artigo sobre as “almas debaixo do altar”, onde Dave interage com menos de 5% da parte do livro em que eu disserto a respeito, ignorando todos os argumentos mais fortes, e sendo em seguida completamente estraçalhado mesmo no pouco que ele pretendeu “refutar” (veja aqui).
 
Para ser sincero, se os artigos dele “refutando” o meu livro provam alguma coisa, é apenas que a imortalidade da alma é uma doutrina tão indefensável que essas tentativas cômicas do Dave talvez seja mesmo o melhor que se possa fazer para defendê-la – ou, para colocar de outra forma, que o melhor deles é ridiculamente constrangedor, o que para qualquer pessoa com um pouco de bom senso serve apenas para reforçar que os argumentos do livro são realmente insuperáveis (ou que alguma refutação decente e séria ainda esteja por vir, talvez depois que eu morra e não esteja mais aqui para me defender).
 
 
João Calvino devastou a posição em uma refutação brilhante chamada “Psychopannychia, ou o Sono Imaginário da Alma”. Não sobrou nada dessa fábula equivocada e totalmente antibíblica depois que ele terminou com ela. Quando Calvino (como Lutero) argumenta a favor da verdade, ele é ótimo.
 
Duas coisas saltam aos olhos aqui. Primeiro, o cinismo de Dave, que acusa Calvino (bem como Lutero) dos piores crimes imagináveis e faz escárnio dele sempre que possível para ridicularizar o protestantismo, mas que magicamente vira “brilhante” quando o que está em jogo é uma doutrina da qual ele compartilha, só porque pode usar como arma contra os mortalistas (especialmente contra os mortalistas protestantes). Em segundo, que Dave certamente nunca leu o livro citado, que é tão mal fundamentado que até hoje praticamente ninguém ouviu falar desse livro e muito menos usa seus argumentos. Diferente das Institutas e de outras tantas obras bem conhecidas do reformador, é um livro que simplesmente caiu no obscurantismo e só recentemente foi “desenterrado” por imortalistas tão desesperados quanto Dave.
 
Eu realmente gostaria de saber se Dave concorda com os argumentos de Calvino neste livro (que ele qualifica de “brilhantes”), por exemplo quando diz que a ressurreição da qual Paulo escreve em 1ª Coríntios 15 (quando o apóstolo afirma que se não fosse pela ressurreição seria melhor «comer, beber e depois morrer») não diz respeito à ressurreição mesmo, mas à alma saindo do corpo após a morte (sim, Calvino literalmente troca “ressurreição” por “imortalidade da alma” para resolver o problema!).
 
Nem deveríamos pegar tão pesado com ele, o qual ainda era um moço escrevendo o seu primeiro livro que, naturalmente, estaria cheio de falhas que o Calvino mais maduro não cometeria, e que sequer conhecia realmente os argumentos que se propunha a refutar (ele literalmente admite no livro que nunca leu nada do que os seus oponentes escreveram, mas que «tenho somente recebido algumas notas de um amigo, que anotou o que ele superficialmente ouviu de seus lábios»). É esta a “refutação brilhante” que Dave jamais leu, mas que acha conveniente citar para impressionar seus leitores protestantes (para depois voltar a ridicularizar Calvino quando deixar de ser conveniente exaltá-lo).
 
 
(Meu artigo) A verdade bíblica é bem diferente disso. Mostramos que, na visão dos escritores bíblicos, os mortos não louvam a Deus e nem mesmo se lembram dEle:
 
“Pois o Sheol não pode louvar-te, a morte não pode cantar o teu louvor. Aqueles que descem à cova não podem esperar pela tua fidelidade. Os vivos, somente os vivos, te louvam, como hoje estou fazendo; os pais contam a tua fidelidade a seus filhos” (Isaías 38:18-19)
 
“Quem morreu não se lembra de ti. No Sheol, quem te louvará?” (Salmos 6:5)
 
(Resposta do Dave) Muitos comentaristas protestantes sustentam que as duas passagens acima expressam uma falta de energia ou força de vontade no Hades/Sheol, em oposição à inexistência ou “sono” inconsciente.
 
Note que Dave nem mesmo faz uma exegese dos textos – se é que realmente os leu –, ele simplesmente se limita a dizer o que certos «comentaristas protestantes sustentam», como se isso por si só livrasse sua responsabilidade de explicar os textos através de uma exegese decente. Imagine como Dave reagiria se ele desse um argumento (por exemplo, contra o dom de línguas pentecostal ou em defesa do Concílio Vaticano II) e eu dissesse apenas que “muitos comentaristas católicos sustentam algo diferente”, como se isso bastasse para refutá-lo. Certamente ele não se importaria com o que esses comentaristas dizem, se não vir acompanhado por bons argumentos.
 
E o problema é que, como eu mostrei exaustivamente em meu livro, esses comentaristas citados não têm bons argumentos – na verdade, muitos deles nem mesmo chegam a apresentar um argumento – para sustentar sua posição. Eles apenas assumem isso, para não ter que lidar com o problema que seria ter que admitir que os mortalistas têm a leitura mais natural e sóbria dos textos.
 
Mas o pior não é isso, mas a hipocrisia de dizer que os mortos no Sheol ou Hades tinham uma «falta de energia ou força de vontade» para explicar Isaías 38:18-19 e o Salmo 6:5, ao mesmo tempo em que usa a seu favor a parábola do rico e Lázaro, a qual é interpretada literalmente e onde os personagens no Hades não tinham qualquer “falta de energia ou força de vontade”. Pelo contrário: eles conversam naturalmente, mesmo com os perdidos no outro lado; o rico sente dor e sede, e Lázaro tem a capacidade de molhar seu dedo na água. O que tudo isso tem a ver com «falta de energia ou força de vontade»? Nada, absolutamente nada.
 
Os personagens da parábola estão perfeitamente despertos e dispostos, exatamente como qualquer um de nós, e em parte alguma temos a menor sugestão ou indício de que Abraão e Lázaro não pudessem louvar ao Senhor (como expresso em Isaías 38:18-19) ou que nem mesmo se lembrassem dEle (como expresso no Salmo 6:5). Pelo contrário: o rico lembra perfeitamente bem de Lázaro e até mesmo dos seus cinco irmãos que permaneciam na terra (Lc 16:27-28), e Abraão lembra perfeitamente bem de Moisés e dos profetas (v. 29). Com isso em mente, note a estratégia de dissimulação: para “explicar” textos como Isaías 38:18-19 e Salmo 6:5, ele diz que os mortos estão praticamente num estado “vegetativo” (embora ainda existam), mas ao mesmo tempo cita em seu favor uma parábola (que para Dave nem mesmo é uma parábola!) que contraria totalmente essa ideia!
 
Este é um pequeno exemplo do cinismo imortalista que eu denuncio ao longo de todo o meu livro. Eles simplesmente não têm uma linha de interpretação clara, lúcida e objetiva, com um mínimo de coerência interna e consistência que ligue todos os textos. Pelo contrário: praticamente tudo é válido conforme a conveniência, mesmo que a explicação do texto X invalide completamente a explicação do texto Y. Mas desde que tanto a interpretação do texto X como a do texto Y contrarie os mortalistas, está tudo bem. É até mesmo difícil de saber se é desonestidade intelectual mesmo, ou se eles realmente inventam tantas desculpas esfarrapadas para cada texto que depois acabam se esquecendo que uma entra em conflito com a outra.
 
 
Em outras partes de Isaías, Ezequiel e Lucas, os habitantes do Sheol são descritos como bastante conscientes:
 
“Nas profundezas o Sheol está todo agitado para recebê-lo quando chegar. Por sua causa ele desperta os espíritos dos mortos, todos os governantes da terra. Ele os faz levantar-se dos seus tronos, todos os reis dos povos. Todos responderão e lhe dirão: ‘Você também perdeu as forças como nós, e tornou-se como um de nós’. Sua soberba foi lançada na sepultura, junto com o som das suas liras; sua cama é de larvas, sua coberta, de vermes” (Isaías 14:9-11)
 
Isso já foi refutado na minha resposta anterior sobre as almas debaixo do altar (e também de forma mais ampla no livro). Vejamos o texto dentro da perícope completa:
 
Isaías 14
3 No dia em que o Senhor lhe der descanso do sofrimento, da perturbação e da cruel escravidão que sobre você foi imposta,
4 assim você zombará do rei da Babilônia: Como chegou ao fim o opressor! Sua arrogância acabou-se!
5 O Senhor quebrou a vara dos ímpios, o cetro dos governantes,
6 que irados feriram os povos com golpes incessantes, e enfurecidos subjugaram as nações com perseguição implacável.
7 Toda a terra descansa tranquila, todos irrompem em gritos de alegria.
8 Até os pinheiros e os cedros do Líbano alegram-se por sua causa e dizem: “Agora que você foi derrubado, nenhum lenhador vem derrubar-nos!”
9 Nas profundezas o Sheol está todo agitado para recebê-lo quando chegar. Por sua causa ele desperta os espíritos dos mortos, todos os governantes da terra. Ele os faz levantar-se dos seus tronos, todos os reis dos povos.
10 Todos responderão e lhe dirão: “Você também perdeu as forças como nós, e tornou-se como um de nós”.
11 Sua soberba foi lançada na sepultura [Sheol], junto com o som das suas liras; sua cama é de larvas, sua coberta, de vermes.
12 Como você caiu dos céus, ó estrela da manhã, filho da alvorada! Como foi atirado à terra, você, que derrubava as nações!
13 Você que dizia no seu coração: “Subirei aos céus; erguerei o meu trono acima das estrelas de Deus; eu me assentarei no monte da assembleia, no ponto mais elevado do monte santo.
14 Subirei mais alto que as mais altas nuvens; serei como o Altíssimo”.
15 Mas às profundezas do Sheol você será levado, irá ao fundo do abismo!
16 Os que olham para você admiram-se da sua situação, e a seu respeito ponderam: “É esse o homem que fazia tremer a terra e abalava os reinos,
17 e fez do mundo um deserto, conquistou cidades e não deixou que os seus prisioneiros voltassem para casa?”
18 Todos os reis das nações jazem honrosamente, cada um em seu próprio túmulo.
19 Mas você é atirado fora do seu túmulo, como um galho rejeitado; como as roupas dos mortos que foram feridos pela espada; como os que descem às pedras da cova; como um cadáver pisoteado,
20 você não se unirá a eles num sepultamento, pois destruiu a sua própria terra, e matou o seu próprio povo. Nunca se mencione a descendência dos malfeitores!
21 Preparem um local para matar os filhos dele por causa da iniquidade dos seus antepassados; para que eles não se levantem para herdar a terra e a cobrirem de cidades.
22 “Eu me levantarei contra eles”, diz o Senhor dos Exércitos. “Eliminarei da Babilônia o seu nome e os seus sobreviventes, sua prole e os seus descendentes”, diz o Senhor.
23 “Farei dela um lugar para corujas e uma terra pantanosa; vou varrê-la com a vassoura da destruição”, diz o Senhor dos Exércitos.
 
O versículo anterior ao texto que Dave cita fala até dos espinheiros e cedros do Líbano como estando no Sheol e conversando entre si (v. 9), e o verso seguinte, que ele também convenientemente omite como todo bom trapaceiro, diz que o rei da Babilônia estaria coberto de larvas e de vermes no Sheol (v. 11), porque obviamente era uma alusão poética ao estado do corpo na sepultura (como expressamente afirmado nos versos 18 ao 20), não a uma alma fantasmagórica em uma outra dimensão. É por isso que os «governantes da terra» nas «profundezas do Sheol» se «levantam dos seus tronos» para recebê-lo (v. 9), embora ninguém realmente acredite que esses reis estavam sentados em tronos no Sheol ainda reinando sobre alguém.
 
Essa é a estratégia de Dave: recorta um texto, tira do contexto, não sabe nem de onde veio, cita apenas a parte que lhe convém e depois reza para ninguém descobrir a manobra.
 
 
Em Ezequiel (32:24-25, 30), o Sheol é descrito como um lugar onde os habitantes “carregam sua vergonha”: obviamente um evento consciente. As pessoas lá falam e descrevem outros que se juntaram a eles no Sheol:
 
“De dentro da sepultura os poderosos líderes dirão ao Egito e aos seus aliados: ‘Eles desceram e jazem com os incircuncisos, com os que foram mortos à espada’” (Ezequiel 32:21)
 
Mais um texto tirado do contexto de forma vergonhosa! Vejamos o texto dentro da perícope completa:
 
Ezequiel 32
18 Filho do homem, lamente pelas multidões do Egito e faça descer para baixo da terra tanto elas como as filhas das nações poderosas, junto com aqueles que descem à cova.
19 Diga-lhe: “Acaso você merece mais favores do que os outros? Desça e deite-se com os incircuncisos”.
20 Eles cairão entre os que foram mortos pela espada. A espada está preparada; sejam eles arrastados junto com toda a multidão do seu povo.
21 De dentro do Sheol os poderosos líderes dirão ao Egito e aos seus aliados: “Eles desceram e jazem com os incircuncisos, com os que foram mortos à espada”.
22 A Assíria está ali com todo o seu exército; está cercada pelos túmulos de todos os seus mortos, de todos os que caíram pela espada.
23 Seus túmulos estão nas profundezas, e o seu exército jaz ao redor de seu túmulo. Todos os que haviam espalhado pavor na terra dos viventes estão mortos, caídos pela espada.
24 Elão está ali, com toda a sua população ao redor de seu túmulo. Todos eles estão mortos, caídos pela espada. Todos os que haviam espalhado pavor na terra dos viventes desceram incircuncisos para baixo da terra. Carregam sua vergonha com os que descem à cova.
25 Uma cama está preparada para ele entre os mortos, com todas as suas hordas em torno de seu túmulo. Todos eles são incircuncisos, mortos pela espada. Porque o seu terror havia se espalhado na terra dos viventes, eles carregam sua desonra com aqueles que descem à cova; jazem entre os mortos.
26 Meseque e Tubal estão ali, com todas a sua população ao redor de seus túmulos. Todos eles são incircuncisos, mortos à espada porque espalharam o seu terror na terra dos viventes.
27 Acaso não jazem com os outros guerreiros incircuncisos que caíram, que desceram ao Sheol com suas armas de guerra, cujas espadas foram postas debaixo de suas cabeças? O castigo de suas iniquidades está sobre seus ossos, embora o pavor causado por esses guerreiros tenha percorrido a terra dos viventes.
28 Você também, ó faraó, será abatido e jazerá entre os incircuncisos, com os que foram mortos à espada.
29 Edom está ali, seus reis e todos os seus príncipes; a despeito de seu poder, jazem com os que foram mortos à espada. Jazem com os incircuncisos, com aqueles que descem à cova.
30 Todos os príncipes do norte e todos os sidônios estão ali; eles desceram com os mortos cobertos de vergonha, apesar do pavor provocado pelo poder que tinham. Eles jazem incircuncisos com os que foram mortos à espada e carregam sua desonra com aqueles que descem à cova.
31 O faraó, ele e todo o seu exército, os verá e será consolado da perda de todo o seu povo que foi morto à espada, palavra do Soberano Senhor.
32 Embora eu o tenha feito espalhar pavor na terra dos viventes, o faraó e todo o seu povo jazerão entre os incircuncisos, com os que foram mortos pela espada, palavra do Soberano Senhor.
 
Como qualquer um pode constatar ao ler todo o contexto, trata-se apenas de linguagem poética para se falar da sepultura, o destino comum e universal de todos os mortos. Por isso o Sheol é citado em paralelismo com o túmulo (qeber), como se fossem a mesma coisa. Note que parte alguma do texto fala de almas ou espíritos desencarnados, tampouco de tormento com fogo ou de torturas infernais, apenas se refere ao Sheol como um local onde todos os corpos mortos pela espada jazem.
 
O verso 18 começa dizendo que as multidões do Egito desceriam para baixo da terra, o que para os imortalistas é uma linguagem que se refere ao inferno ou ao “mundo espiritual dos mortos” na outra dimensão. Contudo, a própria continuação do verso diz que elas desceriam «junto com aqueles que descem à cova (bowr)», referindo-se à sepultura, não a uma dimensão espiritual de vida consciente. O verso seguinte diz que eles desceriam e se deitariam com os incircuncisos, onde “deitar” (shakab, que também significa “descansar” ou “repousar”) é uma força de expressão para falar do indivíduo na sepultura, e não como se houvesse uma rede de dormir no inferno.
 
O verso 21 é o que Dave cita fora de contexto para dizer que os líderes “falaram” dentro do Sheol, mas se esquece que o que foi dito é que «eles desceram e jazem com os incircuncisos, com os que foram mortos à espada», usando o mesmo termo hebraico shakab, que diz respeito a uma pessoa morta na sepultura. A não ser que o ímpio esteja repousando tranquilamente no inferno, o sentido do texto é que os egípcios se tornariam iguais aos demais mortos; ou seja, que “descansariam” o sono da morte na sepultura assim como eles, sem terem mais como oprimir outros povos.
           
O que prova este sentido com mais clareza é o verso seguinte, que diz que “a Assíria está ali com todo o seu exército; está cercada pelos túmulos de todos os seus mortos, de todos os que caíram pela espada” (v. 22). Primeiro ele diz que a Assíria “está ali”, ou seja, no mesmo lugar que os egípcios estariam (que o verso anterior diz ser no Sheol). Se Dave tem razão, portanto, os assírios estariam numa dimensão espiritual metafísica, que seria a morada dos espíritos fora do corpo. Mas observe como a continuação do texto refuta toda pretensão de se interpretá-lo desta forma, já que diz que «está cercada pelos túmulos de todos os seus mortos».
 
A não ser que os túmulos também tenham sido teletransportados para uma outra dimensão, é evidente que o autor estava falando apenas da sepultura ou da cova, onde os assírios estariam enterrados com todos os seus mortos. Em outras palavras, de acordo com o verso anterior, o “está ali” se refere ao Sheol, e, de acordo com a continuação do verso, se refere à sepultura. Isso não é uma contradição, uma vez que o Sheol é precisamente a “sepultura universal dos mortos” – mas seria um grande problema se o entendêssemos como um lugar de vida consciente de espíritos incorpóreos, que de modo algum poderia ser igualado à sepultura.
 
Note ainda que o verso 23 prossegue dizendo que «seus túmulos estão nas profundezas», e que o exército «jaz ao redor de seu túmulo». Tudo isso comprova que o autor não estava falando de um mundo espiritual numa realidade metafísica, mas da própria sepultura, onde o exército jaz (descansa) após a morte. Isso também confirma que o termo “profundezas”, na Bíblia, não diz respeito a um “mundo inferior” no interior da terra, como afirmam os imortalistas mais fundamentalistas, já que a expressão é usada aqui para descrever os túmulos (qeber).
 
“Descer para baixo da terra”, portanto, não designava um mundo subterrâneo dos espíritos, mas dizia respeito à condição dos cadáveres que desceram à cova, como aponta o verso seguinte:
 
“Elão está ali, com toda a sua população ao redor de seu túmulo. Todos eles estão mortos, caídos pela espada. Todos os que haviam espalhado pavor na terra dos viventes desceram incircuncisos para baixo da terra. Carregam sua vergonha com os que descem à cova(v. 24)
 
É neste contexto que aparece a segunda menção ao Sheol na perícope, que fala dos guerreiros incircuncisos “que desceram ao Sheol com suas armas de guerra” (v. 27). Se o Sheol é uma habitação de espíritos incorpóreos em outra dimensão ou um mundo subterrâneo para onde vão as almas, isso significaria que os espíritos imateriais descem ao Sheol com suas armas (físicas) na mão, o que é tão pitoresco que nem mesmo Dave admitiria. Agora veja como o texto faz um perfeito sentido na visão mortalista, que entende o Sheol como a região subterrânea da terra, compreendendo todos os que morreram e estão embaixo da terra. Neste caso, o que o texto está dizendo é que eles pereceram ainda com suas armas em punho, no contexto da batalha, e ali foram soterrados. De longe uma interpretação muito mais lógica e coerente.
 
É digno de nota que logo após dizer que os edomitas “jazem com os incircuncisos, com aqueles que descem à cova(v. 29), Deus continua dizendo que “todos os príncipes do norte e todos os sidônios estão ali; eles desceram com os mortos cobertos de vergonha” (v. 30). Para onde foi que eles desceram? Onde é o “ali”? Obviamente, ele não está falando de um mundo espiritual em outra dimensão, mas da cova, como diz o final do verso anterior, complementado pelo verso 30. O texto termina dizendo que “embora eu o tenha feito espalhar pavor na terra dos viventes, o faraó e todo o seu povo jazerão entre os incircuncisos, com os que foram mortos pela espada” (v. 32).
 
Essa é a tônica de todo o capítulo: o faraó, tão exaltado e temido pelos viventes, teria o mesmo fim que qualquer outro humano. Ele não teria um destino especial, como criam os egípcios, que faziam questão de embalsamar os faraós pensando na outra vida. Em vez da sobrevivência da alma em um mundo espiritual, o que o faraó teria era um fim indigno e vergonhoso na sepultura, como todos os demais. É notável que, embora o capítulo fale de um homem ímpio e de nações ímpias, não há nada ali que faça alusão a um tormento no pós-morte, a torturas colossais, a demônios de rabo grande e tridente ou a um fogo inextinguível.
 
Mesmo quando alguém “fala”, é no mesmo sentido poético/alegórico que as árvores também falam, e a própria fala serve pra destacar não uma vida consciente em meio aos tormentos ou às bem-aventuranças celestiais, mas precisamente o fim da existência na sepultura. É lamentável e até mesmo revoltante uma mensagem tão clara como essa seja pervertida por trapaceiros como Dave, que não perdem a primeira oportunidade de tirar um texto do contexto pra fundamentar um ensino herético, como se Ezequiel estivesse contradizendo o salmista (Sl 6:5) e como se Isaías estivesse contradizendo a si mesmo (Is 38:18-19).
 
Essa é a diferença entre quem faz uma exegese séria analisando honestamente todo o contexto, e quem é um “caça textos” desesperado em encontrar qualquer brecha onde possa arranjar um jeito de meter sua doutrina ali.
 
 
(Meu artigo) ...não sabem de coisa alguma que se passe debaixo do sol (Ec 9:5-6), não tem conhecimento algum (Ec 9:10), dentre várias outras evidências que constatamos.
 
(Resposta do Dave) Se a primeira cláusula de 9:5 é entendida em sentido absoluto, então a segunda cláusula também deve ser assim interpretada. Assim, os mortos não teriam “recompensa” nem consciência. Isso negaria a ressurreição e a recompensa dos justos (veja Ap 20:11-13, 21:6-7, 22:12, 14). Obviamente, então, uma qualificação de algum tipo deve ser colocada em Eclesiastes 9:5.
 
Salomão não está negando a recompensa no dia do juízo, porque a própria sequência do texto explica em que sentido eles “não têm recompensa”: «...nem tampouco terão eles recompensa, mas a sua memória fica entregue ao esquecimento». Embora a ACF traduza como “mas”, o hebraico traz a conjunção ki, que significa mais propriamente “porque” (como você pode ver aqui, é de longe a tradução mais comum para o termo no AT). Ou seja, o autor não está senão explicando o porquê que os mortos não esperam recompensa, «porque sua memória está entregue ao esquecimento» (de acordo com a NVI, «já não se tem lembrança deles»).
 
Então, a “recompensa” que o texto se refere não é a recompensa do dia do juízo, mas uma recompensa terrena, no sentido de ser reconhecido para além de sua morte em função de seus feitos (é exatamente o mesmo sentido do início do livro, quando ele diz que “ninguém se lembra dos que viveram na antiguidade, e aqueles que ainda virão tampouco serão lembrados pelos que vierem depois deles” – cf. 1:11).
 
Isso não muda em nada o fato de que «os mortos não sabem coisa nenhuma», como expresso na primeira parte do texto. Se o texto deve ser entendido no sentido de “não saber de nada do que acontece nesta vida”, é uma refutação cabal à doutrina da intercessão dos santos, na qual os mortos precisam saber do que acontece aqui para que possam interceder pelos vivos. Ao rezar para um “santo”, um fiel católico não imagina que o mesmo não saiba de nada do que acontece aqui – incluindo a sua própria reza –, mas subtende-se que ele está ciente de suas preces para que possa interceder por elas perante Deus. É por isso que Eclesiastes 9:5 é um golpe de morte na doutrina papista – a não ser que Dave consiga mostrar de que forma os “santos” no além conseguem interceder por gente que eles nem mesmo sabem da existência.
 
 
Em outras palavras, em relação a este mundo, os mortos não sabem nada, mas estão em um reino diferente, onde sabem alguma coisa.
 
Só há dois problemas com isso: primeiro, se os mortos não sabem de nada em relação a este mundo, como podem interceder pelos vivos (que estão precisamente neste mundo)? Talvez Dave alegue que é Deus quem conta para eles o que acontece aqui, e assim eles ficam sabendo do que se passa. Mas se é assim, por que não orar direto a Deus? Por que Deus precisaria contar a um morto o que você está passando para que esse morto interceda a seu favor, quando pode Ele mesmo fazer isso sem passar por qualquer burocracia? Que sentido faz essa terceirização da oração?
 
Um católico reza a um santo, mas o santo não sabe de nada do que o católico reza, então Deus precisa contar ao santo o que o católico está rezando, para que o próprio santo esteja ciente e então peça a Deus aquilo que o próprio Deus poderia ter feito de primeira, mas preferiu se submeter a toda essa burocracia sem sentido. Não me admira que tradicionalmente os países católicos – como o próprio Brasil – tenham sido os campeões da burocracia, onde é preciso um milhão de pessoas carimbando papéis onde tudo poderia ser feito de forma mais rápida e sem dor de cabeça. Talvez a lição aqui seja de que ao invés de pedir algo diretamente a alguém, seja mais útil pedir que essa pessoa informe uma terceira, para que essa terceira a convença de que deve fazer isso mesmo.
 
O segundo problema é que, embora este texto se refira ao que acontece “debaixo do sol”, um pouco adiante Salomão fala também da inconsciência dos mortos em seu próprio mundo, o Sheol:
 
“O que as suas mãos tiverem que fazer, que o façam com toda a sua força, pois no Sheol, para onde você vai, não há atividade nem planejamento, não há conhecimento nem sabedoria” (Eclesiastes 9:10)
 
Embora algumas traduções vertam por “sepultura”, é o Sheol que consta no hebraico – ou seja, exatamente o «reino diferente» onde Dave acredita que os mortos estejam perfeitamente vivos e cientes do que acontece à sua volta. O problema é que Salomão não diz que neste reino sim os mortos estão conscientes de alguma coisa, mas que ali – isto é, no Sheol – «não há atividade nem planejamento, não há conhecimento nem sabedoria». Eu já mostrei amplamente em meu livro como apenas o termo “atividade” (ma`aseh) já basta para anular qualquer chance de vida consciente no além – o que é reforçado pela falta de “conhecimento” e “sabedoria”. Portanto, os mortos não só não sabem de nada deste mundo, mas de qualquer mundo – justamente porque não mais existem de qualquer forma.
 
 
Como outros exemplos desse sentido limitado de “não saber nada” nas Escrituras, veja 1º Samuel 20:39 e 2º Samuel 15:11, onde uma interpretação de inconsciência seria ridícula.
 
O primeiro texto citado diz que “o menino apanhou a flecha e voltou sem saber de nada, pois somente Jônatas e Davi sabiam do que tinham combinado” (1Sm 20:38-39), onde o contexto deixa claro que “sem saber de nada” diz respeito a nada do que foi combinado entre eles (note a diferença gritante para com Eclesiastes 9:5, onde é dito que os mortos não sabem de coisa alguma). O segundo texto citado carrega o mesmo sentido contextual, quando diz que “Absalão levou duzentos homens de Jerusalém. Eles tinham sido convidados e nada sabiam nem suspeitavam do que estava acontecendo” (2Sm 15:11). Ou seja, eles não sabiam do que estava acontecendo, não “de coisa alguma”. Dave simplesmente quer “misturar alhos com bugalhos” (ou, para usar uma expressão em inglês com a qual ele deve estar mais habituado, comparing apples to oranges).
 
 
(Sobre Jeremias 15:1) A afirmação do cenário hipotético mostra que é possível (e provável que realmente ocorra). Moisés e Samuel eram famosos por seus poderes de intercessão (Êx 32:11-12; 1Sm 7:9; Sl 99:6). Deus não teria mencionado esses homens se não fosse possível ou “imaginável” que eles pudessem interceder dessa maneira. Ele simplesmente teria dito: “Meu coração não se voltará para este povo”.
 
O pensamento aqui é diferente. Ele está dizendo, com efeito: “Mesmo os melhores e mais eficazes intercessores não serão capazes de mudar minha opinião sobre isso, se eles implorarem a mim”. Seria inútil anotar o que é impossível. Seria como se eu dissesse: “Mesmo que um quadrado pudesse ser simultaneamente um círculo, eu não mudaria de ideia”. É inútil e sem sentido referir-se a impossibilidades inerentes.
 
O texto em questão é o que Deus declara a Jeremias:
 
"Disse-me, porém, o Senhor: Ainda que Moisés e Samuel se pusessem diante de mim, não estaria a minha alma com este povo; lança-os de diante da minha face, e saiam" (Jeremias 15:1)
 
O curioso é que eu efetivamente citei exemplos da Escritura onde a mesma expressão é usada em contextos análogos e de fato implica em algo impossível. Dave não rebateu nenhum deles e nem mesmo citou essa parte no artigo, o que mostra até que ponto é covarde e mal-intencionado, recortando o que quer e ignorando por completo o restante do próprio texto que refuta por antecipação seu contra-argumento. E mesmo ciente disso, prefere bater o pé e manter seu argumento por pura teimosia, do que reconhecer honestamente o erro e tentar argumentar de alguma outra maneira.
 
Observe que o texto não diz que Moisés e Samuel estavam diante de Deus ou intercediam depois de mortos; pelo contrário, diz que ainda que eles estivessem, Deus não os atenderia (o que significa que eles não estavam). Se Moisés e Samuel estivessem vivos naquele momento como almas desencarnadas no Paraíso, eles obviamente estariam orando por Israel, pois foi o que esses dois profetas sempre fizeram pelo povo em vida e o que não deixariam de fazer depois da morte. Neste caso, o texto diria que apesar da intercessão deles, Deus não os atendeu. Mas o que o texto diz é exatamente o oposto: ainda que eles fizessem isso – o que não fazem, porque estão mortos –, Deus não os atenderia.
 
Se Dave usa este texto como uma prova da intercessão de gente morta, também deveria acreditar que quando o salmista diz que “ainda que os montes se transportem para o meio dos mares” (Sl 46:2) significa que os montes se transportavam mesmo para o meio do oceano, ou que o texto em que Salomão diz “ainda que vivesse duas vezes mil anos” (Ec 6:6) significa que existiam pessoas que de fato viviam dois mil anos em sua época, quando a expectativa de vida era de setenta anos (Sl 90:10).
 
Deus pergunta: “Se eu tivesse fome, precisaria dizer a você? Pois o mundo é meu, e tudo o que nele existe” (Sl 50:12). Embora o tradutor tenha optado por “se eu”, a expressão usada no hebraico é ’im, a mesma cláusula que consta em Jeremias 15:1. Se a lógica que afirma que a cláusula condicional ’im (traduzida por “ainda que” ou “se”) no texto de Jeremias implica que os dois profetas estavam mesmo na presença de Deus, essa mesma lógica deveria servir para concluir que Deus sente fome. Como é evidente, a cláusula não implica que Moisés e Samuel estavam na presença de Deus, mas exatamente o contrário: que não estavam (da mesma forma que Deus não sente fome).
 
Tal forma de falar serve justamente para reforçar que algo está fora de cogitação, em vez de implicar que acontece mesmo. É exatamente a mesma coisa do exemplo que Dave cita em contrário, atirando no próprio pé. O pensamento é realmente análogo à ideia de que “mesmo que um quadrado pudesse ser simultaneamente um círculo, eu não mudaria de ideia” – ou seja, uma coisa impossível, que jamais se concretizaria. A única diferença é que aqui não estamos lidando com uma impossibilidade lógica (ou seja, com algo ontologicamente impossível), mas com algo impossível dentro da perspectiva bíblica (a não ser que Moisés e Samuel ressuscitassem para estar na presença de Deus e interceder pelo povo).
 
Se os dois profetas estivessem realmente na presença do Senhor, a cláusula ’im perderia totalmente o sentido, já que quando usada neste contexto alude a coisas inverossímeis, não ao que de fato acontece ou aconteceria. Em outras palavras, a impiedade de Israel havia chegado a um nível que mesmo se Moisés e Samuel estivessem diante de Deus intercedendo pelo povo, Deus não os ouviria. Obviamente, a coisa não precisou chegar a este ponto, justamente porque se tratava de uma situação hipotética e irreal. Se realmente Samuel e Moisés estivessem com Deus no céu, Ele não diria “ainda que estivessem diante de mim”, mas “apesar de estarem diante de mim”. A diferença é crucial e facilmente perceptível a qualquer intérprete amador (mas não tão amador quanto Dave).
 
Outra forma possível de se expressar caso Samuel e Moisés realmente estivessem na presença de Deus seria dizer “ainda que estejam diante de mim” (como se eles realmente estivessem, mas Deus se recusava a atendê-los). Ao dizer “ainda que estivessem diante de mim”, está bem nítido que não estavam. Assim, o texto não só não prova nada de intercessão dos santos, como prova de forma clara e inequívoca que Moisés e Samuel não estavam na presença de Deus – justamente porque a morte é a cessação da existência até a ressurreição.
 
Por fim, não há nenhuma razão para pensar que Samuel e Moisés não estariam intercedendo se eles realmente estivessem na presença de Deus, como sempre fizeram pelo povo de Israel em vida (e justamente por isso são usados de exemplo neste texto). Teriam os dois profetas desistido de interceder pelo povo depois de mortos? Dificilmente. Mas note que o texto não diz que Deus se recusou a atender a intercessão deles, mas “ainda que estivessem” diante de Deus, não seriam atendidos. Isso reforça o fato de que eles nem mesmo estavam na presença de Deus, muito menos estavam intercedendo.
 
 
Se eles de fato não estivessem orando a Deus depois de suas mortes, ou não devessem, então Deus não teria dito que eles poderiam fazê-lo; e/ou o teria condenado.
 
Mas Deus não disse que “eles poderiam fazê-lo”! Isso é o que Dave está tirando da cartola, apoiado por literalmente zero textos bíblicos, o que não é de se admirar, já que ele claramente não sabe o que é uma exegese e jamais deve ter consultado o hebraico na vida e procurado referências cruzadas. O que o texto efetivamente diz é que ainda que Moisés e Samuel estivessem diante de Deus, Deus não os atenderia. E, como vimos, sempre que no AT a cláusula condicional ’im entra em cena em contextos semelhantes, é de fato para expressar algo “impossível” (no sentido de ser totalmente inverossímil, como Deus ter fome, alguém viver dois mil anos ou os montes se transportarem para o meio do oceano). Alguém pelo amor de Deus ensine o Dave a fazer exegese, antes que a coisa fique feia demais.
 
 
De fato, Samuel é mencionado como estando em existência consciente após a morte, e Saul fez um pedido de intercessão a ele e ele recusou (em vez de dizer que Saul deveria orar apenas a Deus: veja 1Sm 28:3, 13-19).
 
Como já foi exaustivamente argumentado no livro (e como reconhecido pela vasta maioria dos próprios teólogos imortalistas!), não se tratava da alma de Samuel, mas de um espírito demoníaco se passando por Samuel. Essa parte no livro tem 24 páginas, então eu não vou cansar o leitor transcrevendo tudo aqui (quem quiser, basta baixar o livro gratuitamente e ler). O engraçado é que o mesmo Calvino, que Dave exaltou lá atrás por sua obra contra os aniquilacionistas, rejeitou com horror a ideia de que Deus possa ter «permitido que Seus profetas fossem sujeitos a tal conjura diabólica», e a ampla maioria dos Pais da Igreja – que Dave julga serem católicos romanos tais como ele – também, incluindo os Pais imortalistas. Talvez não seja um bom momento para exaltar Calvino e os Pais aqui, não é mesmo?
 
 
Moisés aparece ainda consciente após a morte a Jesus (com Elias), na transfiguração (Mt 17:1-3).
 
Também já foi exaustivamente explicado no livro que Dave “refuta” sem ler. Você pode conferir um resumo aqui (extraído da versão antiga do livro), ou baixar a versão mais recente e conferir o comentário mais amplo.
 
 
No deuterocanônico, afirma-se que Jeremias continua a orar pelos judeus e Jerusalém após sua morte: “Então também apareceu um homem, distinto por seus cabelos grisalhos e dignidade, e de maravilhosa majestade e autoridade. E Onias falou, dizendo: ‘Este é um homem que ama os irmãos e ora muito pelo povo e pela cidade santa, Jeremias, o profeta de Deus’” (2º Macabeus 15:13-14)
 
Primeiro: é um livro apócrifo, que nunca foi aceito no cânon judaico e que foi rejeitado sumariamente pelos Pais da Igreja até Agostinho (e mesmo por muitos depois dele). A posição de Jerônimo sobre esses livros, que prevaleceu por toda a Idade Média, é que eles podiam ser lidos para a edificação dos fiéis, mas não para fundamentar doutrina (leia mais sobre isso aqui e aqui). Segundo: o próprio contexto (v. 11) esclarece que se tratava de uma visão, não de um evento real. Terceiro: os dois livros dos Macabeus estão cheios de textos mortalistas, os quais eu dispenso aqui por não ser o foco do artigo (quem quiser ver as citações, leia da página 793 em diante do livro).
 
O restante do texto do Dave é um repeteco do que já foi argumentado e refutado sobre as “almas debaixo do altar” no Apocalipse (veja aqui) e sobre a parábola do rico e Lázaro, que é um dos textos mais abordados no livro, ao qual eu dedico não menos que 54 páginas. Uma vez que os argumentos de Dave não têm nada de originais e são rigorosamente uma repetição de tudo aquilo que já foi esmiuçado no livro, eu preferi publicar como um artigo separado (aqui) em vez de reproduzir abaixo e tornar este artigo desnecessariamente mais longo.
 
Semana que vem eu volto com mais diversão com os textos de Dave, que até lá já deve ter aproveitado o seu imenso tempo livre para mais uns dez novos artigos (o que é ótimo, pois gera conteúdo para continuar nos divertindo por toda a eternidade).
 
Paz a todos vocês que estão em Cristo.

Por Cristo e por Seu Reino,
Lucas Banzoli (youtube.com/LucasBanzoli)

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4 comentários:

  1. Ou seja: para os católicos, os mortos intercedem pelos vivos (a dita intercessão dos santos) e os vivos intercedem pelos mortos (através da reza pelas almas no purgatório). Existe um livre tráfego de informações entre vivos e mortos e vice-versa no catolicismo. Lucas, você poderia fazer um artigo refutando a necromancia!

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    1. Tecnicamente falando, todos os artigos contra a imortalidade da alma também servem contra a necromancia (já que sem uma alma imortal não tem como haver invocação de mortos), mas vou ver se escrevo algo mais específico sobre isso, obrigado pela dica!

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  2. Eai Lucas. Aqui: "Mas o pior não é isso, mas a hipocrisia de dizer que os mortos no Sheol ou Hades tinham uma «falta de energia ou força de vontade» para explicar Isaías 38:18-19 e o Salmo 6:5, ao mesmo tempo em que usa a seu favor a parábola do rico e Lázaro, a qual é interpretada literalmente e onde os personagens no Hades não tinham qualquer “falta de energia ou força de vontade”[...]." Eu acho que eles responderiam que Jesus libertou Abraão e Lázaro do Sheol, por isso ambos estavam bem conscientes e com energia na parábola. Embora Jesus ainda não houvesse morrido e libertado ambos quando contou essa parábola Ele era onisciente então saberia perfeitamente o que aconteceria no céu após essa libertação do justos.

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    1. Mas se a parábola retrata o que aconteceria no futuro, esse futuro poderia ser depois da ressurreição (inclusive há alguns mortalistas que pensam assim, embora eu discorde totalmente deles já que parábola é parábola e não história real), então por essa ótica a parábola não serviria em nada pra apoiar a imortalidade da alma, por isso nenhum apologista imortalista afirma uma coisa dessas.

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