*Nota: O artigo abaixo é extraído do meu livro "A Lenda da Imortalidade da Alma", que você pode baixar gratuitamente ou comprar a versão impressa na página dos livros.
***
Uma parábola dos tempos modernos – Certa vez, morreram, na mesma hora, em lugares
diferentes, mas não muito distante um do outro, dois homens. O primeiro era um
senhor simples, sem estudos, motorista de ônibus na pequena região onde morava.
Era conhecido de todos, principalmente pela má execução de sua tarefa
profissional. Era muito, mas muito barbeiro. Foi assim a vida toda, até que
morreu em acidente de trânsito. O segundo homem era o pastor da cidadela. Pois
bem, chegaram na porta do céu praticamente juntos. São Pedro atendeu primeiro o
motorista.
No questionário de
admissão para entrar no céu, quando São Pedro queria saber quem ele era, aquele
homem começou a explicar: eu sou aquele conhecido motorista de ônibus, da
empresa tal, de tal cidade, e tal e tal...
“Ah, tá!”, disse São
Pedro. “Você é o motorista barbeiro!”. “Justamente”, respondeu o homem. “Pois
bem!”, disse São Pedro. “Entre! O céu é todo seu!”.
O pastor, que estava
assistindo a entrevista enquanto esperava para ser também atendido, pensava:
“Se este homenzinho foi admitido ao céu, imagine eu, o pregador”.
São Pedro se virou para
o pastor: “Você é o próximo?”.
“Sim”, respondeu o
pastor, todo empolgado: “Sou o pastor, da mesma cidade deste barbeiro
que acabou de entrar...”.
São Pedro cortou:
“Olha, eu sei quem você é. Infelizmente, você não tem entrada livre ao céu. Não
poderá ficar aqui”.
“Mas como?”, contestou
o pastor. “Este homenzinho ignorante, iletrado, que fazia seu trabalho mal
feito, que não pregava, que vivia dando prejuízo pra empresa, que sempre
deixava todos os seus passageiros tensos e temerosos, vai entrar no céu, e eu,
o pregador, que vivia na igreja, que falava da palavra de Deus, que procurava
deixar todos em paz, não poderei entrar?”.
“É justamente nesta
diferença que está a razão da rejeição de sua entrada em face da admissão do
motorista”, respondeu São Pedro.
“Não entendi”, disse o
pregador.
O apóstolo porteiro do céu
explicou: “É que enquanto você estava na igreja, com seus sermões sem vida,
colocando todos os seus fiéis para dormir, o motorista estava colocando todos
os seus passageiros para rezar”.
***
A parábola que você
acabou de ler costuma ser contada pelo pastor adventista Valdeci Junior aos
seus ouvintes, ao introduzir a parábola do rico e Lázaro. Depois que ele conta
a história, ainda antes de revelar ao auditório qual será o assunto do dia,
começa a perguntar às pessoas quais são as lições que elas tiraram da história.
É interessante notar alguns pontos da reação do auditório. Assim que termina a
história, os ouvintes sorriem e vão fazendo a lista das lições aprendidas:
•
“Nem todo o que me diz Senhor, Senhor, entrará no Reino dos céus”
•
“Os simples também têm entrada no céu”
•
“É melhor a devoção do que o formalismo”
•
“Ser pastor não garante a salvação”
•
“O pregador deve fazer bons sermões”
•
“O céu não admite só pela aparência”
•
“As aparências enganam”
•
“Devemos vigiar e orar”
E por aí vai.
O interessante é que
ninguém até hoje diz que viu nesta história lições como:
•
“São Pedro está na porta do céu esperando por nós”
•
“Antes de entrarmos no céu teremos que passar por uma entrevista”
•
“Assim que morremos chegamos ao céu”
•
“Pode ser que cheguemos à porta do céu e não sejamos admitidos”
•
“A alma é imortal”
Ninguém se escandaliza
por isso ou despreza a história. Esperam então que ele introduza o assunto da
palestra baseado em alguma das lições que conseguiram tirar dela. Começam a
imaginar qual será o tema da noite, sem jamais imaginar que ele falaria da
parábola do rico e do Lázaro. Ele se aproveitou de uma crendice popular apenas
como um cenário onde se passava uma história fictícia, a fim de ensinar algumas
lições. Por quê?
• O auditório sabe que
esta não é uma história verdadeira.
• Eles conhecem a
crendice popular de que quem morre vai pro céu, e na entrada encontra São
Pedro.
• Eles não creem nesta crendice como doutrina.
Sabem que isto não é verdade (o pastor já conhece o auditório e sabe que eles
creem como ele crê, sobre o destino do homem após a morte).
• O auditório vai
conseguir captar as lições que ele quer ensinar com mais facilidade, pois,
através de uma metáfora, está figurando o ensino. Isto é didática. Na primeira
vez que ele ouviu essa história, ela foi contada por um palestrante que não
cria na imortalidade da alma, para um público que também não cria. Na ocasião,
todos entenderam a mensagem. A questão de mortalidade ou imortalidade não foi
cogitada por ninguém. Não era este o assunto.
Parábolas devem ser interpretadas literalmente? – Jesus contou a
parábola do rico e Lázaro pela mesma razão que o pastor adventista contou a
parábola do pastor e do barbeiro. Nenhum deles estava querendo endossar alguma
doutrina errônea sobre a vida após a morte, porque o propósito passava longe de
ser uma aula teológica sobre o que acontece depois da morte. Tanto os ouvintes
de Jesus como os do pastor Valdeci eram perfeitamente bem doutrinados para
saber disso. Nos tempos de Jesus, parábolas eram bem mais comuns do que são
hoje, e ninguém em sã consciência as interpretaria literalmente. Eles sabiam
que uma parábola é por definição uma alegoria, como diz o dicionário Michaelis:
PARÁBOLA
■ substantivo feminino
1
Narrativa alegórica que tem por objetivo transmitir uma mensagem de
maneira indireta, usando como recurso a analogia ou a comparação.
2
Narrativa alegórica que transmite preceitos morais ou religiosos,
comum nas Escrituras Sagradas.
Quando um imortalista
iletrado diz que “se a parábola não é real, então Jesus mentiu”, mostra em
primeiro lugar que não sabe nem o significado básico de uma parábola, que
jamais teve por objetivo ser uma história real ou expressar necessariamente
coisas reais. A prova disso é que na Bíblia não faltam exemplos de parábolas
onde árvores falam e conversam entre si, e nem por isso os mesmos imortalistas
dizem que os personagens bíblicos “mentiram” (ou que árvores falem mesmo). Por
exemplo, no segundo livro de Reis, nós nos deparamos com a seguinte parábola:
“Então Amazias enviou
mensageiros a Jeoás, filho de Jeoacaz e neto de Jeú, rei de Israel, com este
desafio: ‘Venha me enfrentar’. Contudo, Jeoás respondeu a Amazias: ‘O
espinheiro do Líbano enviou uma mensagem ao cedro do Líbano: Dê sua filha em
casamento a meu filho. Mas um animal selvagem do Líbano veio e pisoteou o
espinheiro. De fato, você derrotou Edom e agora está arrogante. Comemore a sua
vitória, mas fique em casa! Por que provocar uma desgraça que levará você e
também Judá à ruína?’”
(2º Reis 14:8-10)
O objetivo de Jeoás
obviamente não era ensinar que os espinheiros literalmente conversam com os
cedros do Líbano, assim como o objetivo de Jesus ao contar a parábola do rico e
Lázaro obviamente não era dizer que o Sheol/Hades era um lugar de almas
queimando ou conversando entre si. Em ambos os casos, a conversa das árvores ou
dos mortos serve apenas como um «recurso de analogia ou comparação», que é
precisamente no que consiste uma parábola.
Em outras palavras,
embora os elementos em si (espinheiros, cedros ou mortos) sejam fictícios, eles
transmitem uma lição moral mais profunda, que é de fato o objetivo do autor ao
usar a parábola como recurso didático. Em Juízes vemos uma parábola semelhante,
onde uma verdade é novamente ilustrada através de um diálogo fictício entre
árvores:
“Certo dia as árvores saíram
para ungir um rei para si. Disseram à oliveira: ‘Seja o nosso rei!’. A
oliveira, porém, respondeu: ‘Deveria eu renunciar ao meu azeite, com o qual se
presta honra aos deuses e aos homens, para dominar sobre as árvores?’. Então as
árvores disseram à figueira: ‘Venha ser o nosso rei!’. A figueira, porém,
respondeu: ‘Deveria eu renunciar ao meu fruto saboroso e doce, para dominar
sobre as árvores?’. Depois as árvores disseram à videira: ‘Venha ser o nosso
rei!’. A videira, porém, respondeu: ‘Deveria eu renunciar ao meu vinho, que
alegra os deuses e os homens, para ter domínio sobre as árvores?’. Finalmente
todas as árvores disseram ao espinheiro: ‘Venha ser o nosso rei!’. O espinheiro
disse às árvores: ‘Se querem realmente ungir-me rei sobre vocês, venham
abrigar-se à minha sombra; do contrário, sairá fogo do espinheiro e consumirá
até os cedros do Líbano!’”
(Juízes 9:8-15)
Jotão contou essa
parábola para ilustrar o quão errada foi a escolha dos israelitas por
Abimeleque como rei, o qual havia assassinado os seus irmãos a sangue frio. Ao
invés deles escolherem homens mais dignos, representados pelas árvores mais
“nobres”, escolheram justamente um assassino sanguinário, representado pelo
espinheiro. Aqui nós novamente vemos um cenário totalmente fictício envolvendo
conversas entre árvores, não para fundamentar uma doutrina de árvores falantes,
mas para ilustrar uma verdade mais profunda através do uso da alegoria.
Se em parábolas até
árvores ganham personalidade e falam, não admira que haja na Bíblia textos em
menor quantidade que apresentem mortos “vivos” falando alguma coisa, uma vez
que tanto os mortos como as árvores são seres inanimados que podem ser
personificados em cenários alegóricos com um propósito ilustrativo. A razão por
que os imortalistas interpretam a parábola do rico e Lázaro literalmente para
dizer que os mortos estão vivos no mundo do além, mas não fazem o mesmo com as
parábolas que dão personalidade e consciência às árvores, é tão-somente porque
estão apegados à pressuposição de que as almas são imortais e precisam
desesperadamente encontrar apoio bíblico a isso.
Some a isso o
importante adendo de que, diferente do que a maioria pensa, Jesus não contava
parábolas para esclarecer verdades espirituais, mas para ocultá-las. Por
mais estranho que isso possa parecer, Jesus não contava parábolas para que a
multidão entendesse melhor o seu ensino, mas justamente o contrário: para que não
entendessem! Se você está surpreso com isso, deve ser porque ainda não leu
Mt 13:10-14, que diz o seguinte:
“Os
discípulos aproximaram-se dele e perguntaram: ‘Por que falas ao povo por
parábolas?’. Ele respondeu: A vocês foi dado o conhecimento dos mistérios do
Reino dos céus, mas a eles não. A quem tem será dado, e este terá em grande
quantidade. De quem não tem, até o que tem lhe será tirado. Por essa razão eu
lhes falo por parábolas: ‘Porque vendo, eles não veem e, ouvindo, não ouvem nem
entendem’. Neles se cumpre a profecia de Isaías: ‘Ainda que estejam sempre
ouvindo, vocês nunca entenderão; ainda que estejam sempre vendo, jamais
perceberão’” (Mateus 13:10-14)
É por isso que Jesus
falava aos discípulos claramente, mas à multidão falava apenas por parábolas: “Jesus falou todas estas coisas à multidão por parábolas.
Nada lhes dizia sem usar alguma parábola” (Mt 13:34). Não
é porque Jesus queria que a multidão entendesse, mas justamente o contrário, já
que não foi concedido a ela conhecer os «mistérios do Reino dos céus», uma vez
que se tratava de uma multidão interesseira e de coração endurecido. Isso
explica por que o povo estava sempre entendendo errado o que Jesus dizia, como
acontece o tempo todo nos evangelhos.
A multidão de João 6
achou que Jesus estava falando de canibalismo quando se declarou o «pão vivo»
que devia ser comido (Jo 6:51-52), a mulher samaritana do poço de Betesda
interpretou literalmente a «água viva» (Jo 4:10-11), e mesmo um doutor da lei
como Nicodemos achou que Jesus falava de voltar ao ventre da mãe para renascer
quando o ouviu falar sobre «nascer de novo» (Jo 3:3-4). Até os discípulos
tinham dificuldade em entender quando Jesus falava literalmente e quando não,
razão por que discutiram sobre não terem pão quando Jesus pediu que tivessem
cuidado com o fermento dos fariseus e dos saduceus (Mt 16:6-7).
Isso indica que Jesus
não contou a parábola do rico e Lázaro para ensinar qualquer coisa sobre a vida
após a morte. Se ele sempre falava à multidão por alegorias que ela não
entendia, e se o propósito era justamente que eles não entendessem, a
moral da parábola não pode ser algo que tenha sido dito literalmente e que
qualquer um pode facilmente enxergar ali. Mesmo se houvesse alguém tão tolo a
ponto de pensar que Jesus queria ensinar a vida após a morte ao contar a
parábola (o que não é de se espantar, já que confundiam tudo o que Jesus falava
de forma alegórica), o verdadeiro propósito da parábola não estava em suas
linhas, mas nas entrelinhas, oculto ao olhar da multidão.
A história do rico e Lázaro não é uma parábola? – Cientes disso, a
única alternativa que resta aos imortalistas é dizer que Lc 16:19-31 não é uma
parábola, mas uma história real. Este é o único jeito de exigir a literalidade
do texto, o que distinguiria essa parábola das parábolas em que árvores falam e
outras de natureza claramente simbólica, e faria com que a mensagem que Jesus
queria passar à multidão fosse exatamente aquilo que pode ser extraído
literalmente dela e que qualquer um da multidão seria capaz de entender
perfeitamente bem. No entanto, essa tentativa esbarra nas evidências
esmagadoras, tanto dentro como fora de Lc 16:19-31, que demonstram que Jesus
estava contando realmente uma parábola, não uma história real.
Para começo de
conversa, a perícope em questão se encontra justamente no meio de parábolas bem
conhecidas de Lucas. Tanto os capítulos precedentes como os seguintes,
incluindo o próprio capítulo 16, são recheados de parábolas dos mais variados
tipos, como se Lucas tivesse reservado essa parte do livro quase que
exclusivamente às parábolas de Jesus. De fato, Lucas é de longe o evangelista
que mais narra parábolas de Jesus, e muitas delas nós conhecemos apenas por seu
registro, como a do bom samaritano e a do filho pródigo (além, é claro, da do
rico e Lázaro). Vejamos o contexto:
CAP. 14 – A parábola da grande festa
CAP. 15 – A parábola da ovelha perdida
CAP. 15 – A parábola da moeda perdida
CAP. 15 – A parábola do filho pródigo
CAP. 16 – A parábola do administrador
desonesto
CAP. 16 – A ******** do
rico e Lázaro
CAP. 17 – A parábola do empregado
CAP. 18 – A parábola da viúva e do juiz
Teria Lucas incluído
uma história real justamente no meio de uma série de parábolas? Há quem diga
que sim, porque em Lc 16:19-31 ele não diz expressamente que se trata de uma
parábola (como se fosse necessário explicar que se trata de uma parábola quando
se vem narrando parábolas em sequência). Isso seria como um comediante num show
de Stand Up precisar interromper sua apresentação para avisar a plateia de que
aquilo que ele contaria em seguida seria mais uma piada, o que não faz o
menor sentido. Se a parábola do rico e Lázaro estivesse inserida em meio a
histórias reais, seria de se esperar um aviso prévio desses, mas não quando
todo o contexto é notoriamente marcado por histórias fictícias.
Isso explica por que
muitas outras parábolas em torno de Lucas 16 também não vem com um aviso prévio
de que se trata de uma parábola, embora todos (incluindo os imortalistas) assim
entendam. Isso inclui a parábola da moeda perdida (Lc 15:8-9), a do filho pródigo
(Lc 15:11-32) e a do administrador desonesto (Lc 16:1-8), que antecedem
imediatamente a do rico e Lázaro. É obviamente desnecessário enfatizar que se
trata de outra parábola quando se vem narrando várias parábolas em
sequência, o que é pressuposto por qualquer pessoa com um QI acima de zero. É
por isso que até mesmo Clemente de Alexandria (150-215), um dos precursores da
imortalidade da alma no meio cristão (mas que tinha um QI acima de zero)
reconhecia abertamente que se tratava de uma parábola.
Há vários outros casos
em que Jesus não diz expressamente que se tratava de uma parábola, mas seus
discípulos assim entenderam (e nestes casos, com razão). Por exemplo, em Lc
12:37-40 Jesus conta uma história sem dizer que é uma parábola, e então Pedro
questiona: “Senhor, estás contando esta parábola
para nós ou para todos?” (Lc 12:41). Jesus não responde a Pedro dizendo
que ele estava enganado ao julgar ser uma parábola, porque de fato se tratava
de uma (embora ele não tivesse anunciado como sendo uma parábola).
O mesmo acontece em Mt
15:14-15, quando Pedro pede para Jesus explicar uma parábola sem que Jesus
tivesse avisado se tratar de uma. Em Lc 5:36, o evangelista diz que Jesus “lhes contou esta parábola...”, mas a mesma
parábola é citada em Mc 2:21 sem a informação de que se trata de uma parábola.
Isso nos mostra que nem os evangelistas faziam questão de sempre acentuar
quando se tratava de uma parábola, nem os discípulos precisavam que Jesus
afirmasse explicitamente que se tratava de uma. Eles naturalmente entendiam que
quando Jesus contava histórias ele ensinava através de parábolas.
O principal argumento
daqueles que dizem que Lc 16:19-31 foge a essa regra é que Jesus usou um verbo
de existência quando disse que “havia um
homem rico...” (v. 19), o que provaria que neste caso se tratava de uma
história real. Este argumento, apesar de repetido à exaustão pelos apologistas
imortalistas, só demonstra o peso de sua ignorância, já que o termo “haver” nem
mesmo consta no grego, que diz apenas anthrōpos de tis ēn plousios kai
enedidysketo porphyran
(“certo homem rico se vestia de púrpura...”).
O “havia” é uma
inserção no texto feita pelos tradutores, que fizeram o mesmo no início do
capítulo, na parábola do administrador desonesto: “Havia
um homem rico que tinha um administrador; e este lhe foi denunciado como quem
estava a defraudar os seus bens...” (Lc 16:1). Os imortalistas saberiam
disso se tivessem feito uma pesquisa básica antes de repetir bobagens de
terceiros e usá-las como argumento. E mesmo se o grego realmente usasse um
verbo de existência, isso apenas implicaria que o rico existia na parábola,
da mesma forma que o filho pródigo existia na parábola, bem como os
acontecimentos que o cercam:
“Depois
de ter gasto tudo, houve uma grande fome em toda aquela região, e ele
começou a passar necessidade...” (Lucas 15:14)
Ao contrário
de Lc 16:19, onde o “havia” é uma inserção que não consta no original grego,
aqui na parábola do filho pródigo de fato aparece o verbo ginomai, que
significa «vir à existência, começar a ser, receber a vida».
Nem por isso alguém acredita que a parábola do filho pródigo era uma história
real, como alguns reivindicam em relação à parábola do rico e Lázaro (que não
usa um verbo de existência). Um
autor de ficção, como Lewis e Tolkien, frequentemente usa verbos de existência
em sua história, não porque esteja descrevendo algo real, mas porque aquilo
existe dentro da ficção.
Os problemas da interpretação literal – Ademais, os próprios detalhes narrativos da
parábola do rico e Lázaro provam que se trata mesmo de uma parábola, isto é, de
uma alegoria sem nenhuma pretensão de ser entendida literalmente. Muitos
imortalistas são rápidos em citar a parábola como uma “prova” da imortalidade
da alma, mas se esquecem dos detalhes incômodos que ela apresenta para quem
quer interpretá-la literalmente:
Lucas 16
19 Havia um homem rico que se vestia de
púrpura e de linho fino e vivia no luxo todos os dias.
20 Diante do seu portão fora deixado um
mendigo chamado Lázaro, coberto de chagas;
21 este ansiava comer o que caía da mesa
do rico. Em vez disso, os cães vinham lamber as suas feridas.
22 Chegou o dia em que o mendigo morreu, e
os anjos o levaram para junto de Abraão. O rico também morreu e foi sepultado.
23 No Hades, onde estava sendo atormentado,
ele olhou para cima e viu Abraão de longe, com Lázaro ao seu lado.
24 Então, chamou-o: “Pai Abraão, tem
misericórdia de mim e manda que Lázaro molhe a ponta do dedo na água e
refresque a minha língua, porque estou sofrendo muito neste fogo”.
25 Mas Abraão respondeu: “Filho, lembre-se
de que durante a sua vida você recebeu coisas boas, enquanto que Lázaro recebeu
coisas más. Agora, porém, ele está sendo consolado aqui e você está em
sofrimento.
26 E além disso, entre vocês e nós há um
grande abismo, de forma que os que desejam passar do nosso lado para o seu, ou
do seu lado para o nosso, não conseguem”.
27 Ele respondeu: “Então eu lhe suplico,
pai: manda Lázaro ir à casa de meu pai,
28 pois tenho cinco irmãos. Deixa que ele
os avise, a fim de que eles não venham também para este lugar de tormento”.
29 Abraão respondeu: “Eles têm Moisés e os
Profetas; que os ouçam”.
30 “Não, pai Abraão, disse ele, mas se
alguém dentre os mortos fosse até eles, eles se arrependeriam”.
31 Abraão respondeu: “Se não ouvem a
Moisés e aos Profetas, tampouco se deixarão convencer, ainda que ressuscite
alguém dentre os mortos”.
O primeiro detalhe
interessante é que a parábola simplesmente não menciona alma ou espírito.
Apenas diz que “o rico foi sepultado”, e então ele aparece no Hades. Isso não é
um mero detalhe sem relevância, porque, como veremos, a parábola personifica
personagens inanimados, tal como as parábolas de árvores falantes. Por essa
razão, os personagens aparecem no Hades com o corpo físico, não como uma alma
desencarnada ou um espírito sem corpo. Isso fica nítido no verso 24, em que o
rico pede a Lázaro que “molhe a ponta do dedo
na água e refresque a minha língua”.
Isso mostra que Lázaro
tinha dedos e que o rico tinha língua, ambos órgãos de um corpo físico, e não
partes de um espírito imaterial ou de uma alma fantasmagórica. Como comenta
Bacchiocchi, “eles são retratados como existindo fisicamente, a despeito do fato de
que o corpo do homem rico foi devidamente depositado na sepultura. Foi o seu
corpo levado ao Hades juntamente com sua alma por engano?”.
Não me surpreende que alguns cheguem ao ponto de sugerir que o espírito fora do
corpo tem os mesmos órgãos do corpo, para superar esses problemas
intransponíveis – mesmo que isso faça de Jesus um mentiroso, quando disse que
um espírito não tem carne nem ossos (Lc 24:39).
Mais do que isso, se um
espírito já tem corpo, pra que serve o nosso corpo atual? E por que diabos
haveria a ressurreição? Por outro lado, se a alma é desmaterializada e
incorpórea, por que precisaria de um mineral palpável e material como a água?
Note que o risco deseja refrescar sua língua, o que indica que ele
sentia sede. Mas a sede é uma característica biológica, não de um espírito
imaterial e fluídico. Nem Deus nem os anjos precisam “refrescar a língua”,
porque não têm um corpo para sentir sede. O rico precisava, porque ele não
estava ali como um “fantasminha”, mas corporalmente.
É por isso que não é de
se estranhar que não haja em toda a parábola uma única menção de “alma” ou de
“espírito”, como seria de se esperar se Jesus quisesse ensinar a imortalidade
da alma. Nenhum dos personagens está ali como uma alma fora do corpo, mas com
corpos com dedo, língua e tudo o que têm direito. Assim, se tomássemos a
parábola literalmente, como querem os imortalistas, ela provaria não a
sobrevivência da alma, mas a sobrevivência do corpo físico no Hades (o que é
obviamente ridículo).
Uma interpretação
literal da parábola também abre margem a uma série de inconsistências, que os
imortalistas dificilmente gostariam de incluir em sua teologia. Por exemplo,
ela abriria espaço para a crença de que os salvos no céu poderão conversar
tranquilamente com os ímpios no inferno, assim como o rico conversa com Lázaro.
Imagine você não apenas saber que seu filho está queimando no inferno em um
terrível sofrimento sem fim, mas ainda poder vê-lo sofrendo diante dos
seus olhos e se comunicar com ele sem poder fazer nada para atenuar seu
sofrimento ou livrá-lo dali. Eu aposto que sua experiência no céu não seria tão
satisfatória assim...
Embora alguns
imortalistas afirmem que após a morte de Jesus os salvos no “Seio de Abraão”
foram magicamente transferidos para uma dimensão celestial e não mais têm
contato com os perdidos no inferno, ainda assim teriam que lidar com o incômodo
fato de que por pelo menos quatro mil anos (desde o início da criação até a
vinda de Cristo) isso não apenas era possível, mas acontecia realmente. Se você
nunca viu um pastor ou padre pregar que os salvos no Paraíso podiam ou podem
ver e conversar com os ímpios no inferno, talvez seja porque até eles sabem que
a parábola não pode ser interpretada literalmente, mas mesmo assim a usam para
“provar” a sobrevivência da alma. Não há nada que não possa mudar conforme a
conveniência.
Para piorar, Abraão e o
rico conversam como se estivessem perto um do outro, mas o próprio relato diz
que havia «um grande abismo» entre eles, tão grande que impedia Lázaro de
molhar a língua do rico e de alguém passar de um lado para o outro (v. 26).
Mesmo se estivessem próximos, dificilmente poderiam se ouvir com clareza, já
que milhões de almas naquele lugar estariam gritando ao mesmo tempo e berrando
sem parar em um sofrimento incalculável. O próprio rico dificilmente
conseguiria manter um diálogo daqueles com Abraão, se estivesse realmente “sofrendo muito neste fogo” (v. 24). Quem é que
consegue dialogar com toda a naturalidade do mundo enquanto literalmente está
ardendo nas chamas de um lago de fogo?
O diálogo, assim como
tudo o que o rodeia, é bem típico de uma história fictícia, e, como toda
ficção, esbarra em absurdos lógicos quando transposto para a realidade. Mesmo
se o rico conseguisse dialogar tranquilamente com Abraão daquela distância
enquanto sofria amargamente entre as chamas, por que raios ele pediria para
Lázaro molhar a sua língua, quando todo o seu corpo estava sendo
devorado pelo fogo? Eu nunca vi alguém que está queimando se preocupar com
refrescar a língua, a não ser que apenas a língua estivesse pegando fogo. Ou o
fogo da parábola é de mentirinha, ou o inferno não deve ser tão doloroso assim,
afinal.
Ademais, de que
adiantaria uma gota d’água, quando todo o corpo está queimando em um fogo
inextinguível? Por acaso aquela gota apagaria o fogo do inferno no qual o rico
estava mergulhado? Provavelmente ela evaporaria antes mesmo que chegasse
até ele, ainda mais considerando que eles estavam separados por um abismo
intransponível. Como
observa Bacchiocchi,
um abismo separa Lázaro no céu (o
seio de Abraão) do homem rico no Hades. O abismo é por demais amplo para
qualquer um atravessar, contudo, estreito o suficiente para permitir que
conversem. Tomado literalmente, isso significa que o céu e o inferno mantêm uma
distância geográfica que permite a santos e pecadores ver e comunicar-se uns
com os outros, eternamente. Ponderemos por um momento o caso de pais no céu
vendo seus filhos agonizando no Hades por toda a eternidade. Tal visão não
destruiria a própria alegria e paz do céu? É impensável que os salvos verão e conversarão
com seus queridos não-salvos por toda a eternidade através de um abismo
divisório.
Nem precisamos entrar
em mais detalhes problemáticos, como de que forma o rico sabia que era Abraão,
ou como reconheceu Lázaro de tão longe entre as fumaças de uma fornalha, ou
para onde iam as pessoas no “Seio de Abraão” antes de Abraão existir, ou por
que ele pediria que Lázaro molhasse apenas “a
ponta do dedo na água” (v. 24) para transportar a água de um lugar
para outro em vez de encher as mãos de água e lhe dar um verdadeiro “banho”, ou
de que forma algumas gotas de água poderiam aliviá-lo de um tormento daquela
natureza, entre tantos outros detalhes perturbadores da perícope, que os
imortalistas fingem que não existem.
Também chama a atenção
que o rico peça que Abraão mande Lázaro de volta ao mundo dos vivos, como se
Abraão tivesse algum poder para isso, em lugar de Deus. E embora Abraão não
atenda o pedido, ele não diz que não tinha esse poder, como quando diz que não
podia lançar água devido ao grande abismo que os separava.
É intrigante como os
mesmos imortalistas que de forma irresponsável e leviana citam fora de contexto
os trechos da parábola que lhes convém para dizer que os mortos estão vivos no
outro mundo não fazem o mesmo para sustentar a doutrina de que os espíritos
descem ao Hades com corpo e tudo, que os salvos podem conversar tranquilamente
com os não-salvos do outro lado, que a maior preocupação de quem tem o corpo
fritando no inferno é refrescar a língua ou que é possível ter um diálogo
racional com alguém que esteja tão longe num ambiente tomado pela gritaria e
pelo pânico, e com o corpo todo em chamas.
Eles obviamente
descartam esses pontos inconvenientes da parábola e os omitem de suas apostilas
teológicas, mas cinicamente usam a parábola como a “prova” do estado
intermediário, do “Seio de Abraão”, do fogo do inferno e de outras abobrinhas
que lhes convém. Isso mostra o grau de cinismo e dissimulação dos nossos
oponentes, que não pensam duas vezes em usar essa parábola para endossar a vida
após a morte, mas não são loucos de acreditar no tipo de vida após a
morte que a parábola registra nem ousam sustentar esse tipo de “céu” e
“inferno” em seus estudos bíblicos.
Aparentemente, a
passagem serve pra dizer que a alma sobrevive à morte, mas não pra retratar
como realmente é essa vida após a morte. É como se o texto dissesse que “o rico
estava sendo atormentado no Hades, e fim”. O resto nunca é citado, a não ser
quando é pra tirar vergonhosamente algum trecho do contexto (sem nunca citar os
detalhes que mencionamos aqui). Se eles realmente acreditassem que a
parábola é uma história real ou que pelo menos retrata como realmente é a vida
após a morte, o tipo de estado intermediário que pregariam nos púlpitos seria
totalmente compatível com o que existe na parábola – mas você nunca verá nenhum
deles dizendo que os espíritos têm corpos físicos que sentem sede ou que é
possível bater um papo bacana com quem está queimando lá do outro lado.
Isso prova que eles
mesmos sabem que essa parábola não tem nada de real, mas precisam usá-la
mesmo assim na falta de argumentos melhores – e também porque com uma parábola
dessas é muito mais fácil ludibriar os incautos, que nem sequer sabem o que é
uma parábola ou que nenhuma doutrina séria depende de parábolas para ser
sustentada. Como comenta Bacchiocchi, “vez
após vez tenho-me surpreendido com o fato de que até mesmo conceituados
eruditos com frequência ignoram um princípio hermenêutico fundamental de que
linguagem de parábola não pode e não deve ser interpretada literalmente”.
A razão por
que é tão comum ver teólogos “conceituados” citando a parábola do rico e Lázaro
como a “prova” da sobrevivência da alma é porque ela é praticamente tudo o que
eles têm, e sem ela só restam meia dúzia de textos desconexos que nem
remotamente indicam a sobrevivência da alma. Essa é a verdadeira e única razão
por que eles precisam se apegar tão desesperadamente a essa parábola
como o “carro-forte” da doutrina que eles defendem, já que é o único argumento
capaz de ludibriar um leigo desavisado em uma leitura superficial e desprovida
de exegese.
Se a parábola não é literal, então Jesus mentiu? – É intrigante
notar que os mesmos imortalistas que cinicamente acusam os mortalistas de
assumir que “Jesus mentiu” ao contar uma parábola em que há vida após a morte
não dizem que Jesus mentiu quando afirmou a possibilidade de justos e ímpios
conversarem após a morte, embora eu não conheça um único imortalista que cogite
tal coisa. É como se Jesus pudesse ter “mentido” sobre os salvos e perdidos
baterem papo depois da morte ou terem corpos físicos no Hades, mas não pudesse
“mentir” sobre existir vida consciente após a morte. Eles pegam da parábola
apenas o que lhes convém, para acusar os mortalistas de fazerem exatamente
aquilo que eles mesmos fazem.
Não à toa, a
concepção tradicional de inferno nas teologias sistemáticas foge completamente
daquele apresentado na parábola, onde Abraão e Lázaro parecem estar numa
piscina conversando com o rico que queima do outro lado mas que está mais
preocupado em refrescar a língua. A própria alegação de que para os mortalistas
Jesus “mentiu” por ter contado essa parábola mostra o quanto os nossos
oponentes são debilitados intelectualmente, a ponto de serem incapazes de
perceber que só faz sentido falar em “mentira” em se tratando de histórias
reais, não de histórias fictícias, como uma parábola.
Se contar uma
história fictícia fosse “mentir”, então todos os escritores de ficção seriam
grandes mentirosos. Para a sorte deles, algo só pode ser considerado uma
mentira quando se pretende dizer uma verdade literal em um contexto literal.
Por exemplo, se alguém estivesse sendo presunçoso e você lhe dissesse “tire o
seu cavalinho da chuva”, ele não poderia com razão te acusar de ser mentiroso
só porque ele não tem um filhote de cavalo ou porque não está chovendo. Isso
porque é óbvio, neste contexto, que a declaração não tem a pretensão de ser
entendida literalmente, da mesma forma que ninguém na época de Jesus
interpretaria uma parábola literalmente.
Para entender
a diferença entre uma coisa e outra, imagine que eu dissesse a você que vi
ontem um alienígena saindo de um disco voador e abduzindo uma vaca numa
fazenda, e tentasse te convencer de que isso aconteceu mesmo, apesar de nunca
ter ocorrido. Neste caso, é evidente que eu estaria mentindo. Mas se eu
contasse isso como uma piada ou como um conto folclórico, ninguém diria que eu
“menti”, mesmo que não tenha havido abdução alguma.
É por isso
que J. K. Rowling não “mentiu” ao escrever Harry Potter, porque ninguém
realmente acredita que haja crianças praticando magia com varinhas mágicas, nem
Tolkien mentiu quando escreveu O Senhor dos Anéis, porque ninguém supõe ser
verdade que existem hobbits, orcs e elfos habitando numa “Terra Média”, e
tampouco C. S. Lewis mentiu quando escreveu Nárnia, porque ele nunca pretendeu
que alguém tomasse como verdade que um armário literalmente conduz a um mundo
de sátiros e gnomos. Eles seriam mentirosos se vendessem as suas histórias como
“baseada em fatos reais”, não como ficção.
O que é
preciso entender é que um conto de ficção tem algo que chamamos de “licença
poética”, que é a liberdade de poder falar coisas que não são verdades,
justamente porque se sabe que não serão encaradas como verdadeiras por parte do
receptor. É por isso que um personagem pode ser assassinado num filme ou numa
obra literária, mas se alguém fizer isso na vida real será preso. Por isso é
tão diferente quando Alec Baldwin “mata” alguém num filme e quando mata no set
de filmagem. Em outras palavras, a ficção é um mundo à parte onde há liberdade
suficiente para se expressar de um modo que não seria correto fora dele.
Seguindo essa
linha, Jesus não “mentiu” ao usar um cenário alegórico na parábola de Lc
16:19-31, da mesma forma que ninguém mentiu em Jz 9:6-15 ou em 2Rs 14:9 (nos
textos que personificam árvores falantes), nem Tiago mentiu quando falou da “ferrugem que testemunha” (Tg 5:3) ou do “salário que clama” (Tg 5:4), nem Moisés mentiu
quando falou do sangue de Abel que clama da terra em Gn 4:10, nem João mentiu
quando disse que “os trovões falaram” (Ap
10:3). O mesmo podemos dizer a respeito dos “campos
exultantes” (1Cr 16:32), das “árvores
jubilantes” (1Cr 16:33), das “colinas que
irromperão em canto” (Is 55:12), das aves e peixes falantes (Jó 12:7-8)
e das montanhas que “regozijam” (Sl 98:8).
Isaías também
não é um mentiroso por ter dito “pranteiem, vocês,
navios de Társis” (Is 23:14), embora o navio não tenha sentimentos nem
fala, e tampouco Jeremias mentiu por ter dito que Deus “fez
com que os muros e as paredes se lamentassem; juntos eles se desmoronaram” (Lm
2:8), apesar das paredes e muros permanecerem tão caladas quanto sempre
estiveram.
Como vemos,
personificar coisas inanimadas é uma prática recorrente na Bíblia, ainda mais
em um contexto parabólico como esse. Assim como árvores falantes em parábolas
não prova que árvores realmente falam ou que alguém mentiu ao dizer que falam,
mortos falantes em outra parábola também não prova que os mortos realmente
falam ou que alguém mentiu ao retratá-los falando. Não devemos condicionar a
doutrina bíblica às parábolas, mas, ao contrário, condicionar a interpretação
da parábola àquilo que a Bíblia como um todo ensina sobre o tema em questão.
Nenhuma parábola que Jesus contou era uma história real, e nem por isso ele era
um mentiroso ou induzia as multidões ao erro, porque elas sabiam que era uma
parábola e sabiam que parábolas não deviam ser entendidas ao pé da letra.
Se um
imortalista do século XXI não sabe, a culpa não é de Jesus, mas dele, por sua
própria ignorância e obstinação. Nenhum dos ouvintes originais de Jesus seria
induzido a pensar que a alma sobrevive após a morte, da mesma forma que ninguém
seria induzido a tomar a mesma atitude que o administrador desonesto da
parábola que Jesus contou imediatamente antes, no início do capítulo. Nesta
parábola, o mordomo infiel desonestamente reduz pela metade os débitos de seus
credores a fim de obter deles algum ganho pessoal (Lc 16:1-9), mas ninguém
acusa Jesus de incentivar a desonestidade nos negócios.
É curioso
observar que os mesmos imortalistas que usam os meios da parábola de Lc
16:19-31 para validar a imortalidade da alma não façam a mesma coisa com os
meios da parábola anterior para validar a administração desonesta, apesar da
parábola dizer que “o senhor elogiou o
administrador desonesto, porque agiu astutamente” (Lc 16:8). Dizem que
“o que aconteceu em Vegas, fica em Vegas”, e, da mesma forma, o que acontece
numa parábola, fica na parábola. É inapropriado e imprudente tirar
conclusões teológicas em cima dos meios de uma parábola, a qual, por definição,
é uma história fictícia, expressa por meio de alegorias. O que devemos extrair
delas é sua lição moral, que geralmente se encontra nas entrelinhas.
Isso responde
a uma objeção imortalista das mais típicas, a de que a parábola tinha que ter
um cenário real, já que as parábolas de Jesus costumavam ilustrar verdades do
dia a dia. O problema é que, como veremos mais adiante, a parábola do rico e
Lázaro não era uma parábola “de Jesus” no sentido de ter sido originalmente
contada por ele, como parece ser o caso das parábolas do bom samaritano e do
filho pródigo, por exemplo. Ao contrário, os próprios estudiosos imortalistas
concordam que a parábola do rico e Lázaro nada mais é que uma adaptação de um
conto popular bem conhecido por todos na época, e contos não precisam ter um
“fundo de verdade”.
Assim como
ninguém acredita que lobos maus destroem casas com um sopro, ninguém deveria
pensar que os mortos conversam no além – ainda mais com dedos, língua e sede,
como na parábola do rico e Lázaro. Se Jesus “mentiu” por ter citado uma
parábola onde os mortos estão “vivos”, teria “mentido” também por ter dito que
os mortos estão com os corpos físicos no outro mundo, uma concepção que nenhum
imortalista admite. É nisso que dá quando se exige um “fundo real” para aquilo
que não foi concebido para ser encarado como real: a própria premissa deles é o
que realmente faz de Jesus um mentiroso!
Ademais, ao
contrário das outras parábolas de Jesus, a do rico e Lázaro não retrata
“verdades do dia a dia”, porque conversar com alguém no inferno não é parte do
“dia a dia” de pessoa nenhuma. Estamos obviamente lidando aqui com um caso sui
generis, isto é, com uma parábola que não tem precedentes, já que é de um
tipo completamente distinto das demais parábolas encontradas nos evangelhos.
O propósito de uma parábola – Quem diz que Jesus era imortalista
porque contou uma parábola cujo cenário inclui a vida após a morte não entende
nem o que é uma parábola, e muito menos o propósito de Jesus ao usá-las. Isso
porque, como vimos, a Bíblia é perfeitamente clara em dizer que Jesus não
contava as parábolas para deixar as coisas mais claras, mas justamente para
mantê-las escondidas do entendimento da multidão de coração endurecido (Mt 13:10-14).
Isso
significa que as parábolas que Jesus contava não podiam ser entendidas pelo
senso comum, como os imortalistas fazem ao dizer que a parábola do rico e
Lázaro ensina a imortalidade da alma. Se este fosse o propósito da parábola,
isso seria tão óbvio que de modo algum se enquadraria no que Jesus diz sobre a
multidão ser incapaz de entender as parábolas, porque não foi dado a ela o
conhecimento dos mistérios do Reino dos céus (Mt 13:11). Em outras
palavras, só é possível entender as parábolas de Jesus espiritualmente,
e por essa razão o povo, que só via as coisas na superfície, era incapaz de
compreendê-las.
Para entender
o que Jesus queria dizer era preciso mais do que uma análise superficial, que é
exatamente o erro que os imortalistas incorrem, os quais são tão
espiritualmente cegos quanto a multidão. Um “mistério” é por definição algo que
está escondido, oculto, mantido em segredo, não algo que esteja escancarado
diante de todos, mediante uma leitura superficial. Isso significa que para entender
o que Jesus queria dizer com a parábola do rico e Lázaro nós devemos ir além
da superfície, buscando captar a intenção por detrás dela – isto é,
seu significado espiritual e oculto, que se esconde no “mais profundo” que
geralmente passa imperceptível numa leitura superficial.
É por isso
que, em se tratando de parábolas, o princípio elementar conhecido por todo
exegeta que se preze é retirar delas sua lição moral, e não os meios
utilizados para se chegar a ela. Da mesma forma que o conto do pastor Valdeci
não tinha qualquer objetivo de ser uma lição sobre o que acontece após a morte,
mas apenas se apropria de um conceito popular para extrair uma lição moral,
assim também ocorria com as parábolas de Jesus, muitas das quais deixariam os
cristãos em apuros se fossem interpretadas literalmente pelos seus meios.
Já citamos o
exemplo da parábola anterior à do rico e Lázaro, em que o administrador
desonesto é elogiado por ter agido astutamente, mesmo ele tendo roubado o seu
patrão. Usando o mesmo recurso hermenêutico que os imortalistas recorrem para
corroborar a imortalidade da alma na parábola do rico e Lázaro, qualquer um
poderia concluir que aqui Jesus estava encorajando os negócios desonestos,
assim como estaria incitando as pessoas a crerem na sobrevivência da alma ao
contar a parábola seguinte. Nós sabemos que isso não é verdade porque a lição
moral da parábola frequentemente não tem qualquer relação com seus meios, que
nada mais são que um instrumento utilizado para se chegar à lição, e não a
lição em si.
No caso da
parábola do administrador desonesto, a lição era que “quem
é fiel no pouco, também é fiel no muito, e quem é desonesto no pouco, também é
desonesto no muito” (Lc 16:10) – nada a ver com roubar o patrão – e,
como veremos, a lição da parábola do rico e Lázaro era que “se não ouvem a Moisés e aos Profetas, tampouco se
deixarão convencer, ainda que ressuscite alguém dentre os mortos” (Lc
16:31) – nada a ver com a imortalidade da alma.
Em outra
parábola, “um juiz que não temia a Deus nem se
importava com os homens” (Lc 18:2) decide atender o pedido de uma viúva
de tanto que ela insistiu: “Embora eu não tema a
Deus e nem me importe com os homens, esta viúva está me aborrecendo; vou
fazer-lhe justiça para que ela não venha me importunar” (vs. 4-5). Jesus
contou essa parábola “para mostrar-lhes que eles
deviam orar sempre e nunca desanimar” (v. 1). Sendo Deus aquele que
atende as orações, qualquer um seria tentado a interpretar as palavras de Jesus
no sentido de que Deus é um juiz ímpio que se irrita com as nossas orações e só
as responde para deixar de ser importunado, que é o que se depreenderia de uma
aplicação literal da parábola. Mas a lição moral é apenas que “Deus lhes fará justiça, e depressa” (v. 8), aos “que clamam a ele dia e noite” (v. 7).
Tome também
como exemplo uma parábola semelhante a essa, em que Jesus diz:
“Suponham
que um de vocês tenha um amigo e que recorra a ele à meia-noite e diga: ‘Amigo,
empreste-me três pães, porque um amigo meu chegou de viagem, e não tenho nada
para lhe oferecer’. E o que estiver dentro responda: ‘Não me incomode. A porta
já está fechada, e meus filhos estão deitados comigo. Não posso me levantar e
lhe dar o que me pede’. Eu lhes digo: embora ele não se levante para dar-lhe o
pão por ser seu amigo, por causa da importunação se levantará e lhe dará tudo o
que precisar. Por isso lhes digo: Peçam, e lhes será dado; busquem, e
encontrarão; batam, e a porta lhes será aberta”
(Lucas 11:5-9)
Mais uma vez,
uma aplicação literal da parábola nos levaria a pensar que Deus não nos dá as
coisas por ser nosso amigo, como Jesus disse que somos (Jo 15:15), mas porque é
importunado e quer se livrar desse incômodo o quanto antes. No entanto, este é
apenas um cenário fictício que em nada representa a realidade do mundo
espiritual, onde Deus “dá a todos liberalmente, de
boa vontade” (Tg 1:5). A lição da parábola não tinha nada a ver com Deus
se irritar com os nossos pedidos, mas apenas que devemos orar com perseverança.
O mesmo
acontece na parábola dos talentos, onde aquele que distribui os talentos é
descrito como “um homem duro, que colhe onde não
plantou e junta onde não semeou” (Mt 25:24). Qualquer um que fizesse uma
aplicação literal da parábola seria levado a pensar que Deus é como aquele
homem de duro coração que age desonestamente, já que é Ele quem distribui os
talentos. No entanto, essa aplicação é falsa pelo simples fato de que os meios
de uma parábola nunca podem ser usados para fundamentar doutrina. Embora seja
um dos princípios mais básicos da hermenêutica, os imortalistas o ignoram pela
necessidade de recorrer a uma parábola para sustentar uma doutrina que dela
depende inteiramente.
Em outra
parábola, “o senhor disse ao servo: ‘Vá pelos
caminhos e valados e obrigue-os a entrar, para que a minha casa fique
cheia’” (Lc 14:23). Sabemos que essa parábola fala a respeito de
salvação, pois Jesus a contou para dizer quem estaria no banquete do Reino de
Deus (v. 15). No entanto, poucos pensam que Deus literalmente obriga as
pessoas a serem salvas, como se elas não tivessem como escolher rejeitá-lo. Se
essa parábola fosse entendida literalmente, a salvação não seria um convite,
mas uma exigência feita na base da força, de maneira coercitiva.
Grande parte
do problema deve-se ao fato de que as parábolas caíram em desuso, e por isso
tanta gente tende a interpretá-las literalmente e extrair doutrina de seus
meios, criando confusões como essas. E os teólogos, que em tese teriam a
obrigação de esclarecer isso aos leigos, preferem endossar o engano, porque
tiram proveito dele para defender a imortalidade da alma. É o tipo de engano
conveniente, que serve aos propósitos de alguém desesperado em encontrar base
bíblica a uma doutrina que sabe que é tão desprovida de fundamento que o jeito
é apelar para uma parábola.
Os significados da parábola – Ao chegar até aqui, você deve ter
aprendido que: (1) Lc 16:19-31 é de fato uma parábola como todas as outras em
torno dela, e não uma história real; (2) se a parábola do rico e Lázaro devesse
ser entendida literalmente, como uma aula de teologia sobre o que acontece após
a morte, ela contradiria não só os mortalistas, mas os próprios imortalistas,
já que nenhum deles acredita que os espíritos vão para o Hades com um corpo
físico tal como o rico e Lázaro, e tampouco o lugar onde estavam se parece com
a noção tradicional de céu e inferno; (3) parábolas são essencialmente
alegorias, não descrições literais, das quais devemos captar a lição moral que
o autor pretende ensinar, em vez de nos prendermos aos meios usados para
ensinar a lição.
Tendo isso em
mente, o que ainda nos resta é saber que lição é essa que Jesus quis ensinar
com a parábola do rico e Lázaro. Parte da dificuldade está no fato de que
muitas pregações são feitas sobre as outras parábolas, explicando seu
significado contextual aos leigos, mas nunca vemos o mesmo sendo feito com a do
rico e Lázaro, porque os imortalistas só conseguem enxergar a imortalidade da
alma ali. Mas entender o significado dessa parábola não é nada complicado
quando captamos o sentido das outras parábolas naquele contexto, especialmente
a do capítulo anterior, que conhecemos como “a parábola do filho pródigo”.
Na verdade,
basta um olhar mais cuidadoso para perceber que o foco daquela parábola não
estava exatamente no filho pródigo (embora seja o foco de quase todas as
pregações contemporâneas), mas justamente no outro filho, que por inveja não
aceitava o fato do pai ter acolhido o seu irmão. Para entendermos isso,
precisamos primeiro ver o contexto que levou Jesus a contar essa parábola e
outras do tipo:
“Todos
os publicanos e ‘pecadores’ estavam se reunindo para ouvi-lo. Mas os fariseus e
os mestres da lei o criticavam: ‘Este homem recebe pecadores e come com eles’.
Então Jesus lhes contou esta parábola: Qual de vocês que, possuindo cem
ovelhas, e perdendo uma, não deixa as noventa e nove no campo e vai atrás da
ovelha perdida, até encontrá-la? E quando a encontra, coloca-a alegremente
sobre os ombros e vai para casa. Ao chegar, reúne seus amigos e vizinhos e diz:
‘Alegrem-se comigo, pois encontrei minha ovelha perdida’. Eu lhes digo que, da
mesma forma, haverá mais alegria no céu por um pecador que se arrepende do que
por noventa e nove justos que não precisam arrepender-se”
(Lucas 15:1-7)
Os fariseus
estavam se incomodando com o fato de publicanos e “pecadores” estarem se
reunindo para ouvir Jesus, pois se julgavam melhores que eles e achavam
inaceitável que um verdadeiro mestre atraísse a atenção do “populacho” cheio de
pecados. Então Jesus começa a contar uma série de parábolas com o mesmo
propósito, a começar pela parábola da ovelha perdida, passando pela da moeda
perdida e pela do filho pródigo. Ele costumava contar várias parábolas com um
mesmo significado básico, como um meio didático de fixar o conceito na cabeça
dos seus ouvintes.
Por exemplo,
a parábola de Mt 25:14-30 tem exatamente o mesmo significado da de Lc 19:12-27,
embora os elementos sejam diferentes (em uma, o patrão encarrega os servos a
cuidar de uma certa quantidade de talentos; na outra, um rei encarrega seus
súditos a cuidar de dez minas). Em Lucas 15, a parábola da ovelha perdida é
bastante similar à da moeda perdida e tem o mesmo significado desta, que depois
é reforçado pelas parábolas do filho pródigo e do rico e Lázaro. Todas elas
tinham o mesmo significado básico, de que Deus dá mais valor ao pecador que se
arrepende do que àqueles que julgam a si mesmos justos que não tem necessidade
de arrependimento.
O irmão do
filho pródigo representa precisamente a mentalidade dos fariseus, que não
aceitavam que os “pecadores” (representados pelo filho pródigo) tivessem se
voltado a Jesus (representado pelo pai amoroso, que o recebeu de braços
abertos). Assim como o outro filho da parábola se revoltou com o pai por
aceitar de volta o filho pródigo, os fariseus se incomodavam com a presença das
multidões seguindo Jesus, e o acusavam de “comer e
beber com publicanos e pecadores” (Mt 9:11).
Todo o ponto
girava em torno não da multidão de pecadores, mas da soberba dos fariseus, que
se achavam superiores aos demais e julgavam não precisar de arrependimento, o
que levou Jesus a dizer que “eu não vim chamar
justos, mas pecadores ao arrependimento” (Mt 9:13). Se achar justo e não
precisar de arrependimento é exatamente a postura do irmão do filho pródigo.
Todas as três parábolas de Lucas 15 têm este mesmo sentido básico, e não é
diferente na parábola de Lc 16:19-31. Curiosamente, poucos versos antes de
contar a parábola do rico e Lázaro, Jesus estava discutindo justamente com os
fariseus:
“Nenhum
servo pode servir a dois senhores; pois odiará a um e amará ao outro, ou se
dedicará a um e desprezará ao outro. Vocês não podem servir a Deus e ao
Dinheiro. Os fariseus, que amavam o dinheiro, ouviam tudo isso e zombavam de
Jesus. Ele lhes disse: ‘Vocês são os que se justificam a si mesmos aos olhos
dos homens, mas Deus conhece os corações de vocês. Aquilo que tem muito valor
entre os homens é detestável aos olhos de Deus’”
(Lucas 16:13-15)
Note que a
discussão entre Jesus e os fariseus tinha tudo a ver com a do capítulo
anterior, envolvendo a autojustificação dos mesmos. Por fora, os fariseus “parecem justos ao povo, mas por dentro estão cheios de
hipocrisia e maldade” (Mt 23:28). Mas além dessa discussão principal, há
aqui um detalhe adicional que não consta no capítulo 15, que são as riquezas.
Os fariseus amavam o dinheiro, e por isso Jesus contou uma nova parábola com os
mesmos significados básicos das três do capítulo anterior, mas incluindo a
questão do dinheiro, para reforçar que “a vida de
um homem não consiste na abundância de bens” (Lc 12:15).
Por isso não
é surpresa que o homem que represente os fariseus aqui, que é o equivalente ao
irmão do filho pródigo na outra parábola, seja descrito como “um homem rico que se vestia de púrpura e de linho fino e
vivia no luxo todos os dias” (Lc 16:19). Tudo é perfeitamente
compreensível quando simplesmente observamos todo o contexto. Se os fariseus
são representados por um homem rico de linhos finos, como é representada a
multidão de “publicanos e pecadores” que na outra parábola é representada pelo
filho pródigo? Aqui, ela é representada por “um
mendigo chamado Lázaro, coberto de chagas; este ansiava comer o que caía da
mesa do rico” (vs. 20-21).
Isso também
faz todo o sentido, já que a multidão que costumava seguir Jesus era tão
miserável que ele dizia que “se eu os mandar para
casa com fome, vão desfalecer no caminho” (Mc 8:3), razão por que ele
lhes multiplicou os pães e os peixes em pelo menos duas ocasiões diferentes (Mt
14:13-21, 15:32-39). Não é à toa que o nome “Lázaro” significa «alguém ajudado
por Deus», como sublinha Ronald Sider.
Note também como o rico da parábola se refere a Abraão: “Pai Abraão, tem misericórdia de mim...” (Lc 16:24). Quem mais
chamava Abraão de pai?
“Quando
viu que muitos fariseus e saduceus vinham para onde ele estava batizando,
disse-lhes: Raça de víboras! Quem lhes deu a ideia de fugir da ira que se
aproxima? Deem fruto que mostre o arrependimento! Não pensem que vocês podem
dizer a si mesmos: ‘Abraão é nosso pai’. Pois eu lhes digo que destas
pedras Deus pode fazer surgir filhos a Abraão”
(Mateus 3:7-9)
E ainda:
“Eu
lhes estou dizendo o que vi na presença do Pai, e vocês fazem o que ouviram do
pai de vocês. ‘Abraão é o nosso pai’, responderam eles. Disse Jesus: ‘Se
vocês fossem filhos de Abraão, fariam as obras que Abraão fez. Mas vocês estão
procurando matar-me, sendo que eu lhes falei a verdade que ouvi de Deus; Abraão
não agiu assim’” (João 8:38-40)
Eles se
apegavam tanto a Abraão que Paulo precisou enfatizar em duas cartas diferentes
que “nem por serem descendentes de Abraão passaram
todos a ser filhos de Abraão” (Rm 9:7), e que “os
que são da fé, estes é que são filhos de Abraão” (Gl 3:7). Em outras
palavras, ao colocar Abraão contra o rico que representava os fariseus na
parábola, Jesus estava fazendo o mesmo que um protestante faria ao colocar
Pedro (que os papistas dizem ter sido o primeiro papa e se orgulham de serem
seus “sucessores”) contra um papa numa parábola, para enfatizar o contraste
entre Pedro e os papas. Jesus fez isso com Abraão e o rico, separando ambos por
um grande abismo.
Os fariseus
se orgulhavam de terem Abraão por pai, mas não agiam em conformidade com o que
Abraão fazia. É por isso que na parábola Jesus coloca Abraão ao lado do mendigo
Lázaro, e o deixa separado do rico por um grande abismo (v. 26). Tudo isso é
muito simbólico, representando ao mesmo tempo o quanto os fariseus passavam
longe daquele em quem ostentavam ter por “pai”, e como quem realmente seguia os
passos de Abraão eram os pecadores arrependidos que eles tanto desprezavam, que
na parábola são colocados ao lado de Abraão na figura de Lázaro.
É isso o que
significa “Lázaro no seu seio” (v. 23), que
os imortalistas bisonhamente interpretam como sendo um lugar intitulado
“O Seio de Abraão”, quando na verdade nada mais era que uma expressão semítica
usada para designar alguém que está junto de outra pessoa (razão por que a NVI
traduz por «ao seu lado», mantendo o princípio da equivalência de sentido). Por
exemplo, quando João diz que “ninguém jamais viu a
Deus; o Deus unigênito, que está no seio do Pai, é quem o revelou” (Jo
1:18), a expressão «o seio do Pai» não diz respeito a um lugar com este nome,
mas é apenas uma forma de dizer que Jesus está ao lado do Pai, assentado
à destra do Todo-Poderoso.
É importante
fazer essa ressalva, porque muitos imortalistas ignorantes – com o perdão do
pleonasmo – não somente transformaram o seio de Abraão da parábola em um
“compartimento” com este nome, como ainda incluíram essa aberração em seus
livros cheios de ilustrações bizarras sobre o estado dos mortos, como na pérola
abaixo:
O próprio
fato do mendigo se chamar Lázaro é bastante simbólico, não só porque seu nome
significa “aquele que Deus socorre”, mas porque Lázaro também era o nome do
homem a quem Jesus havia ressuscitado e suscitado a inveja dos fariseus. Nesta
ocasião, “os chefes dos sacerdotes fizeram planos
para matar também Lázaro, pois por causa dele muitos estavam se afastando dos
judeus e crendo em Jesus” (Jo 12:10-11). Os fariseus não acreditaram em
Jesus mesmo após testemunharem uma ressurreição sobrenatural como a de Lázaro,
por isso não admira que ele tenha dado o nome Lázaro ao mendigo da parábola, a
quem o rico desprezou, e cujos irmãos também não acreditariam se retornasse dos
mortos:
“Ele
respondeu: ‘Então eu lhe suplico, pai: manda Lázaro ir à casa de meu pai, pois
tenho cinco irmãos. Deixa que ele os avise, a fim de que eles não venham também
para este lugar de tormento’. Abraão respondeu: ‘Eles têm Moisés e os Profetas;
que os ouçam’. ‘Não, pai Abraão’, disse ele, ‘mas se alguém dentre os mortos
fosse até eles, eles se arrependeriam’. Abraão respondeu: ‘Se não ouvem a
Moisés e aos Profetas, tampouco se deixarão convencer, ainda que ressuscite
alguém dentre os mortos’” (Lucas 16:27-31)
Como vimos,
tudo isso está envolvo em uma simbologia muito forte. Os fariseus se orgulhavam
de terem Abraão por pai, mas na parábola Abraão repreende o rico, que
representa os fariseus, e ambos estão separados por um abismo. Os fariseus
desprezavam os “publicanos e pecadores” que acompanhavam Jesus, assim como o
rico da parábola desprezava o mendigo. Jesus havia ressuscitado um homem
chamado Lázaro, mas os fariseus, ao invés de crerem em Jesus por causa disso, “fizeram planos para matar também Lázaro, pois por causa
dele muitos estavam se afastando dos judeus e crendo em Jesus” (Jo
12:10-11), e na parábola é dito que eles não acreditariam mesmo se o mendigo
Lázaro ressuscitasse dos mortos. A ligação é mais do que evidente.
Note ainda
que o rico diz que tinha cinco irmãos (v. 28). Jesus poderia apenas ter
dito que ele tinha irmãos, mas é bem específico em dizer que tinha cinco. Se,
como vimos, o rico representava os fariseus, que eram a principal facção dos
judeus, quais seriam esses seus “irmãos”? A conclusão mais lógica é que se
trata de uma alusão às outras facções do Judaísmo da época. Curiosamente, além
dos fariseus, há cinco facções bem conhecidas biblicamente e/ou historicamente:
(1) a dos saduceus (Lc 20:27); (2) a dos zelotes (Lc 6:15); (3) a dos herodianos
(Mc 12:13); (4) a dos samaritanos (Jo 4:9) e (5) a dos essênios. Estes últimos
são os únicos que não aparecem no NT, uma vez que viviam isolados do resto da
sociedade, mas eram bem conhecidos e sua existência é historicamente
consolidada.
O ponto em
comum de todos esses cinco partidos dos judeus da época (ou seis, se contar os
próprios fariseus) é que nenhum deles reconheceu Jesus como o salvador ou
esteve ao lado dele quando a multidão gritava “crucifica-o”
(Jo 19:6). Haviam elementos de cada um deles (ou da maior parte
deles) que aceitou Jesus, como o fariseu Nicodemos (Jo 7:50-52, 19:39-40) ou os
samaritanos que acreditaram em Jesus após ouvir o testemunho da mulher
samaritana do poço (Jo 4:24-42), mas como grupo, nenhum reconheceu Jesus
como o Messias ou esteve com ele até o fim. Isso significa que Jesus foi
rejeitado por todas as facções judaicas de sua época, as quais permaneceram
majoritariamente descrentes depois da ascensão de Jesus, o que está de acordo
com a visão apresentada na parábola, de que o rico (fariseu) tinha cinco irmãos
que também não se convenceriam mesmo se alguém ressuscitasse dos mortos.
Essa é a
mensagem principal da parábola, presente em seu desfecho: “Se não ouvem a Moisés e aos Profetas, tampouco se
deixarão convencer, ainda que ressuscite alguém dentre os mortos” (v.
31). “Moisés e os Profetas” é uma forma de se referir à Escritura que eles
conheciam (i.e, o AT). Por exemplo, quando Paulo chegou em Roma, ele “lhes testemunhou do Reino de Deus, procurando
convencê-los a respeito de Jesus, com base na Lei de Moisés e nos Profetas” (At
28:23). A lei (de Moisés) e os profetas testemunhavam que Jesus era o Messias
prometido, o salvador tão aguardado, mas se eles não acreditavam no testemunho
bíblico, tampouco acreditariam se um morto ressuscitasse.
Em outras
palavras, a dureza de coração dos fariseus havia chegado ao ponto em que nem
mesmo um milagre extraordinário como o da ressurreição de Lázaro seria o suficiente
para convencê-los, já que eles rejeitavam o próprio testemunho bíblico do qual
se diziam mestres, que apontava a Jesus como o Messias. Como Joachim Jeremias
corretamente observa, assim como na “parábola do filho pródigo” a ênfase não
recaía no filho pródigo, mas no outro filho (que também tipifica os fariseus),
também aqui a ênfase não recai em Lázaro, mas no rico e seus irmãos:
A parábola é uma das quatro parábolas
de “dois gumes”. O primeiro ponto diz respeito à inversão da sorte no pós-vida
(vs. 19-26), o segundo (vs. 27-31) trata do pedido do rico a Abraão para que
envie Lázaro aos seus cinco irmãos. Como a primeira parte é extraída de
material folclórico bem conhecido, a ênfase está no novo “epílogo” que Jesus
acrescentou à primeira parte. Como todas as outras parábolas de “dois gumes”,
esta também enfatiza o segundo ponto. Isso significa que Jesus não quer
comentar sobre um problema social, nem tem a intenção de dar um ensinamento
sobre a vida após a morte, mas ele conta a parábola para alertar do perigo
iminente os homens que se assemelham aos irmãos do rico. Portanto, o mendigo
Lázaro é só uma figura secundária, introduzida a título de contraste. A
parábola é sobre os cinco irmãos, e não deveria ser chamada de parábola do rico
e Lázaro, e sim de parábola dos seis irmãos.
Até mesmo os
nomes citados na parábola, que os imortalistas bisonhamente usam como a “prova”
de que não era uma parábola, fazem um perfeito sentido quando captamos o
propósito da parábola. Vale ressaltar que não existe um único dicionário no
mundo que imponha como regra que uma parábola não possa ter nomes próprios.
Essa é uma “regra” inventada por imortalistas desesperados, tirada da própria
cabeça deles. O fato dessa parábola ter nomes não significa que ela não seja parábola,
só significa que é a única parábola de Jesus que tem nomes (da mesma forma que
a parábola do bom samaritano é a única que cita a nacionalidade dos
personagens, mas nem por isso deixa de ser parábola). Se um conto se torna
necessariamente real por ter nomes, até A Branca de Neve e os Sete Anões tem
que ser uma história real, já que os anões têm nome.
Se você só
percebeu agora esses detalhes, não se preocupe: é normal os pregadores
imortalistas usarem a parábola do rico e Lázaro apenas para “provar” a
imortalidade da alma, ignorando o seu verdadeiro sentido contextual. Eles não
apenas mantêm os leigos na ignorância, como são eles mesmos ignorantes do
significado da parábola, já que tudo o que conseguem ver ali é Jesus ensinando
a imortalidade da alma, o que estava longe de ser o propósito. Isso explica por
que essa parábola é tão pouco estudada, uma vez que não há a menor preocupação
em realmente estudar a parábola, mas somente em usá-la como uma arma em
favor de uma doutrina antibíblica.
Como comenta
Aguiar, “apesar das discussões que envolvem esse
relato, curiosamente percebe-se que há um esquecimento dessa parábola dentro da
erudição, uma vez que ela não tem recebido tanta atenção dos estudiosos quanto
outras parábolas de Jesus”.
Em seu livro Parables of Jesus: a history of interpretation and bibliography,
Kissinger lista 123 estudos da parábola do bom samaritano e 254 estudos da
parábola do filho pródigo, mas apenas 67 da parábola do rico e Lázaro.
Isso acontece porque a maioria dos estudiosos prefere assumir que Jesus estava
apenas contando uma historinha sobre como é a vida após a morte – mesmo que
isso caísse de paraquedas no texto – em vez de estudar o contexto e descobrir o
que realmente estava em disputa, para compreender seu verdadeiro propósito.
Faz muito
mais sentido entender que Jesus estava complementando as parábolas anteriores,
no contexto da disputa com os fariseus que arrogantemente desprezavam os
seguidores de Jesus e que pensavam não precisar de arrependimento, do que supor
que ele iria parar tudo para contar uma simples historinha sobre a vida após a
morte, que teria caído de paraquedas no texto sem qualquer justificativa ou
lógica. Se este fosse o propósito, faria muito mais sentido Jesus contar essa
história em sua disputa com os saduceus (Mc 12:18-37) do que aqui, onde nada no
contexto alude à vida após a morte (mas os imortalistas acham que era o que
Jesus queria provar, “porque sim”). É esse o cúmulo do amadorismo que os
imortalistas se metem na ânsia em dar base a uma doutrina flagrantemente antibíblica,
que precisa se agarrar aos meios de uma parábola para se sustentar.
Parábolas
são o suficiente para fundamentar doutrina? – Logicamente, nem todos os
imortalistas são ingênuos ou desonestos o suficiente para apelar a uma parábola
a fim de corroborar suas crenças. John W. Cooper, professor de teologia
filosófica pelo Calvin Theological Seminary e autor de um livro em que defende
a imortalidade da alma, pergunta a respeito dela: “O que esta passagem nos diz a respeito
do estado intermediário?”. E responde com
sinceridade: “A resposta pode ser: ‘Nada’”.
Ele então cita como exemplo algumas das incoerências que listamos aqui,
que os apologistas imortalistas de internet fazem vista grossa: “Seremos nós seres corpóreos no estado intermediário? Serão os
bem-aventurados e os condenados capazes de se verem uns aos outros?”.
Por fim, Cooper conclui
que a parábola
não
nos diz necessariamente no que Jesus ou Lucas criam a respeito da vida no além,
nem propicia uma base firme para uma doutrina do estado intermediário. Pois é
possível que Jesus simplesmente estivesse empregando imagens populares a fim de
ressaltar sua posição ética. Ele podia não estar endossando tais imagens, e não
estar crendo nelas porque sabia serem falsas.
Para ele, “Jesus apenas emprega o imaginário popular para ressaltar
a ética do reino vindouro. Assim, ciente de que este imaginário não passava de
fábulas judaicas, ele não poderia endossar este conceito”.
Snodgrass, também ele um imortalista, concorda com Cooper quando diz que a
parábola “não tem o objetivo de apresentar um
esquema, ou mesmo detalhes precisos acerca do que ocorre depois da morte”.
Ambos estão
cientes do antigo princípio hermenêutico theologia parabolica non est
demonstrativa – ou seja, que doutrina nenhuma pode ser fundamentada apenas
por parábolas. Como reconhece Smith, “é impossível
embasar a prova de uma importante doutrina teológica em uma passagem que abunda
em metáforas judaicas”.
Quem está de acordo com isso é o famoso teólogo Grant R. Osborne, que cita
especificamente a parábola do rico e Lázaro como um exemplo de parábola da qual
não se pode fundamentar doutrina:
Não baseie doutrinas sobre as
parábolas sem conferir detalhes comprobatórios em outro lugar. Isto está intimamente
ligado ao ponto anterior, mas por causa do abuso generalizado das parábolas
exatamente nesta área, eu o apresento aqui como um ponto separado. Por exemplo,
a parábola do homem rico e Lázaro (Lc 16:19-31) é apresentada muitas vezes como
prova de um Hades compartimentalizado. Porém, esse tipo de doutrina não se
encontra no ensino de Jesus em Lucas, e, na verdade, em qualquer outro lugar
nas Escrituras. Logo, a ambientação da parábola no Hades é uma nuance da
parábola, não um dogma, e isso não deve ser enfatizado demais.
O fundo folclórico da
parábola
– Uma razão adicional para não fundamentar doutrina com base nos meios dessa
parábola é algo pouco conhecido dos leitores comuns, que mesmo eu desconhecia
na época da antiga versão do livro: o fato de não se tratar de uma parábola original
de Jesus, mas de uma adaptação de uma parábola famosa tanto no mundo grego como
judaico daqueles tempos. Aguiar diz que uma versão dessa parábola corrente nos
dias de Jesus “pode ser encontrada no Talmude de Jerusalém, nos tratados
Sanhedrin 6.6 (23c) e Hagigah 2.2 (77d)”,
e é descrita por Richards da seguinte maneira:
Dois companheiros ímpios morreram. Um
morreu penitente, o outro não. Quando o homem no Gehinom viu a bênção de seu
amigo, e foi informado de que era por causa da penitência de seu amigo, ele
suplicou que pudesse ter a oportunidade de se arrepender também. A resposta
veio na explicação de que esta vida é a véspera do sábado.
Joachim
Jeremias destaca que as raízes dessa história remontam à fábula egípcia da
viagem de Osíris e de seu pai ao reino dos mortos, que teria sido trazida à
Palestina por judeus alexandrinos, onde foi reformulada como “a história do
pobre escriba e do rico publicano Bar Ma’jan”:
Para entender a parábola em detalhes
e como um todo, é essencial reconhecer que a primeira parte deriva de material
folclórico bem conhecido que se refere à inversão da sorte na vida após a
morte. Este é o conto popular egípcio da jornada de Si-Osíris, filho de Setme
Chamois para o mundo inferior; que conclui com as palavras: “Aquele que foi bom
na terra será abençoado no reino dos mortos; e aquele que foi mau na terra
sofrerá no reino dos mortos”. Os judeus de Alexandria trouxeram essa estória
para a Palestina, onde ela se tornou muito popular como a estória do escriba
pobre e do coletor de impostos rico Bar Ma’jan. Que Jesus estava familiarizado
com essa estória é provado pelo fato de que ele a usou na parábola do Grande
Banquete. Já relatamos lá o começo da estória, como o funeral do escriba não
foi acompanhado, enquanto o publicano foi sepultado com grande pompa. Aqui está
o final da história. Um dos colegas do escriba pobre pôde ver em um sonho o
destino dos dois homens no outro mundo: “Poucos dias depois, esse escriba viu
seu colega em jardins de beleza paradisíaca, regados por correntes de água. Ele
também viu Bar Ma’jan, o publicano, parado na margem de um riacho e tentando
chegar à água, mas sem conseguir fazer isso”.
O proeminente
estudioso alemão Hugo Gressmann também publicou, em 1918, um estudo elaborado
sobre as origens da parábola do rico e Lázaro, que remontariam a uma história
egípcia descoberta em um papiro do século I. O que todas essas versões da
parábola têm em comum é que ao rico é sempre concedida a permissão de voltar e
contar aos seus irmãos os horrores da vida após a morte. No apócrifo judaico de
Janes e Jambres, por exemplo, “a ‘sombra’ de Janes
retorna do Hades para alertar Jambres sobre o fogo e sobre as trevas a fim de
que ele passasse a fazer o bem”.
O Dr. Rodrigo
Silva explica que havia pelo menos sete versões conhecidas dessa parábola
contadas pelos judeus da época de Jesus, além de muitas outras do mundo pagão.
Mas em todas elas o rico consegue o que queria no final: voltar ao mundo dos
vivos para dar o recado que desejava.
Concorda com isso N.
T. Wright, que escreve:
[A
parábola] é muito parecida com um conto popular bem conhecido no mundo antigo;
Jesus não era de modo algum o primeiro a dizer como a riqueza e a pobreza podem
ser revertidas na vida futura. Na verdade, histórias como esta eram tão bem
conhecidas que podemos ver como Jesus mudou o padrão que as pessoas esperavam.
Na história de costume, quando alguém pede permissão para enviar uma mensagem
de volta para as pessoas que ainda estavam vivas na terra, a permissão é
concedida. Aqui não, é o fim da história que os leitores de Lucas foram
instados a enfrentar.
Mas por que
Jesus teria mudado o final da estória? A razão está num conhecido recurso
rabínico de mudança de história, uma tática que consistia em narrar um conto
popular tal como ele era conhecido, mas alterando detalhes na história com o
propósito de refutar tal crença, e não de endossá-la. Vemos isso frequentemente
nas adaptações de cinema de clássicos como Cinderela, cujos remakes modernos
contam com várias reviravoltas em relação à trama original.
Quando vemos
uma dessas adaptações, nosso primeiro pensamento não é que o filme é baseado em
uma história real, porque sabemos que se baseia em um conto popular, um
folclore. Este é o mesmo caso do público que ouviu Jesus, o qual conhecia muito
bem a parábola e sabia que não se tratava de uma história real, mas de ficção.
Jesus sabia que, ao narrar um conto popular como o do rico e Lázaro, seus
ouvintes reagiriam da mesma forma que nós ao ouvirmos uma historinha como a dos
Três Porquinhos ou da Bela Adormecida – ou seja, um conto popular que todo
mundo sabe que se trata apenas de ficção. Somos nós que, por puro anacronismo,
achamos que Jesus contava uma história real, ou que seus ouvintes assim
entenderiam.
Como destaca
Aguiar, “a parábola de Jesus, valendo-se do
folclore judaico, forma um pano de fundo cultural para seu ensinamento
principal na perícope”.
Em vez de tomarmos as adaptações como histórias reais (ou como histórias que
retratam com exatidão o que ocorre nesta vida ou na próxima, como se realmente
houvessem lobos derrubando casas de porquinhos com um sopro), nossa atenção é
voltada para os aspectos da narrativa que são alterados, os quais nos levam a
refletir qual era a intenção do autor. Por exemplo, uma princesa que não
precisa ser salva por um príncipe loiro montado num cavalo branco é uma
adaptação que visa inverter papeis tradicionais para “empoderar” a mulher, algo
muito comum nos dias de hoje.
Ou então
imagine uma versão da Branca de Neve onde, em vez de se casar com um príncipe
rico e belo, ela se casasse com um homem comum e simples, para mostrar que
beleza e dinheiro não são tudo. Se eu fizesse isso, ninguém acima do nível de
ingenuidade infantil interpretaria que eu estou endossando a narrativa da
Branca de Neve como uma história real. Todos entenderiam perfeitamente o ponto,
que é a lição moral que eu desejaria passar com isso. Foi exatamente isso o que
Jesus fez, ao citar uma parábola bem popular, mas com um final alterado para
ensinar uma lição moral que seus ouvintes certamente não esperavam.
Além de mudar
o final da história, Jesus também mudou alguns detalhes no meio da trama,
relacionados ao mundo dos mortos. Nas outras versões da mesma história, o que
ia para o Hades era um espírito incorpóreo, de acordo com a crença platônica
tradicional. Na mitologia grega, como vimos, o Hades era o nome do deus do “mundo
inferior”, que levava esse nome. Este mundo inferior era um lugar subterrâneo
para onde iam as almas dos falecidos, guiadas por Hermes, o emissário dos
deuses, e lá permaneceriam para sempre.
No fim da
luta dos deuses olímpicos contra os Titãs (a Titanomaquia), os deuses olímpicos
saíram vitoriosos. Então, Zeus, Posídon e Hades partilharam entre si o
universo: Zeus ficou com os céus e as terras, Posídon ficou com os oceanos e
Hades com o mundo dos mortos. Sua guarda cabia ao Cérbero, um cão gigante de
três cabeças que era dócil com quem chegava, mas feroz com quem tentasse fugir.
No Hades havia dois compartimentos principais: os Campos Elísios, onde ficavam
os justos, e o Tártaro, onde ficavam os ímpios. Edward Fudge fez o seguinte
resumo do Hades grego:
Na mitologia grega, o Hades era o
deus do mundo subterrâneo, e daí o próprio nome do mundo do nada. Charon
transportava as almas dos mortos ao longo dos rios Styx e Aqueron para as suas
moradas, onde o cão de guarda Cérbero vigiava o portão de modo a que ninguém
escapasse. O mito pagão continha todos os elementos da escatologia medieval:
havia o agradável Elíseos, o sombrio e miserável Tártaro, e mesmo as Planícies
de Asfodel, onde as almas que não se ajustavam a nenhum dos lugares acima
podiam vaguear. Reinando junto ao deus estava sua rainha Proserpina (ou
Perséfone), a quem ele havia violentado no mundo acima.
Como é óbvio,
Jesus não acreditava nesse tipo de Hades, embora frequentemente os escritores
bíblicos usassem os mesmos termos do mundo grego dotando-os de outros
significados, que fossem mais compatíveis com sua própria teologia. Vimos um
exemplo disso na palavra theos, usada em todo o NT para designar o mesmo
Deus do AT (representado pelo tetragrama YHWH), embora no mundo grego fosse
usada para designar o panteão de deuses gregos. A prática de ressignificar
termos pagãos também ocorre em relação a Lilith, que era adorada como uma deusa
na Mesopotâmia e na Babilônia, mas que na Bíblia aparece com um significado
bastante distinto, de “animais noturnos” (Is
34:14).
Da mesma
forma que theos e Lilith, o Hades cristão tinha um significado bem
diferente do Hades grego, pois, como vimos, se identificava precisamente com o
Sheol hebraico, um lugar sem vida ou existência consciente. Isso explica por
que há tantos detalhes cômicos na descrição do Hades na parábola: o Hades da
parábola não era um retrato do Sheol bíblico, mas uma sátira do Hades grego,
já que a parábola se origina de contos gregos populares, que Jesus obviamente
não acreditava serem reais. Por isso, enquanto nos contos gregos o Hades era o
local para onde iam os espíritos fora do corpo, na parábola de Jesus ele faz
questão de colocar no Hades personagens de carne e osso, com língua, dedos, que
sentem sede e tudo mais (Lc 16:24).
O humor
hebraico era bem mais sutil que o brasileiro, e se baseava principalmente no
exagero. Como o nosso humor é diferente do deles, muitos pensam que não há
humor na Bíblia, o que é um grande equívoco. Ele está ali, mesmo que nem todos
percebam a uma primeira vista. Um exemplo dos mais conhecidos é a ocasião em
que Elias zombou dos profetas de Baal, que gritavam e flagelavam o próprio
corpo para que o deus deles os ouvisse e fizesse cair fogo do céu, no desafio
que Elias lhes propôs:
“Ao
meio-dia Elias começou a zombar deles. ‘Gritem mais alto!’, dizia, ‘já que ele
é um deus. Quem sabe está meditando, ou ocupado, ou viajando. Talvez esteja
dormindo e precise ser despertado’” (1ª Reis 18:27)
É evidente
que Elias não acreditava que Baal realmente existisse e estivesse apenas
dormindo ou viajando, mas disse aquilo justamente para satirizar a crença dos
adoradores de Baal. Quando Jesus colocou o rico no Hades com língua e Lázaro
com dedos, e disse que o rico (cujo corpo inteiro queimava no fogo) queria que
Lázaro molhasse apenas a ponta do dedo para refrescar somente a
sua língua, ele estava fazendo precisamente a mesma coisa que Elias:
ridicularizando a crença pagã, que via no Hades um lugar de vida consciente
após a morte. Ao invés de endossar o paganismo, ele estava justamente o
parodiando, mediante a inclusão de elementos na parábola que tornavam a crença
absurda, digna de risos.
O que é
preciso entender é que os exageros e o nonsense da parábola não são
ocasionais, mas foram propositalmente incluídos por Jesus para satirizar o
Hades grego. Ao verem Jesus tratar o Hades pagão como uma piada, seus ouvintes
de modo algum seriam induzidos a acreditar na realidade do mesmo. Em vez disso,
saberiam que Jesus não endossava a crença, da mesma forma que Elias não
endossava a crença em Baal ao ridicularizá-lo. Seria como se eu contasse a
famosa história da Branca de Neve, mas retratasse os sete anões como sete
gigantes musculosos. Isso provocaria risos na plateia, e certamente ninguém
pensaria que eu acredito no conto.
Como acentua Gilmour,
Jesus usa uma história familiar,
repleta da cosmovisão pagã acerca da vida após a morte, porém desmitificando
seu conteúdo. Desse modo, ainda que isto não esteja em primeiro plano, a
parábola veicula uma crítica sutil à ideia equivocada da vida após a morte.
Em suma, a
parábola do rico e Lázaro não é uma história real ou uma lição sobre o que
acontece após a morte, mas uma alegoria sobre a incredulidade e a
autojustificação dos fariseus, à semelhança da parábola do filho pródigo. Para
tanto, Jesus usou como pano de fundo um famoso conto popular da época, onde um
morto consegue voltar ao mundo dos vivos para alertar seus companheiros, mas
muda o final da história, para enfatizar que já não há mais esperança para quem
intencionalmente rejeita o testemunho das Escrituras (“Moisés e os profetas”).
Ele também
mudou intencionalmente aspectos da parábola referentes ao lugar de habitação
dos mortos para satirizar a crença pagã e mostrar a todos o quanto ela é
ridícula. Em vez de um retrato fidedigno do Sheol/Hades bíblico, a parábola é
uma paródia do Hades grego, porque é no Hades grego que se passava o conto
popular ao qual Jesus aludiu, e que todos os seus ouvintes conheciam bem. Como
os imortalistas ignoram todo o contexto da parábola, seu propósito original,
seu público-alvo, seu fundo histórico e os textos que a cercam, criaram a
estúpida ideia de que Jesus contou a parábola – que para alguns nem parábola é
– como uma aula de teologia sobre o que acontece depois da morte, o que seria
cômico, se não fosse trágico.
Na verdade,
como já acentuamos, essa ignorância é proposital, pois nenhum leigo que se
desse ao trabalho de pesquisar o verdadeiro propósito da parábola diante de
todo o contexto bíblico, exegético e histórico iria se dar ao ridículo de
concluir que Jesus estava endossando a crença numa alma imortal. Por essa
razão, em vez de fazerem um estudo sério em torno de Lc 16:19-31, eles preferem
induzir os leigos a pensarem que se trata apenas de uma historinha sobre a vida
após a morte, já que assim podem usá-la como a “prova” da sobrevivência da alma.
Por Cristo e por Seu Reino,
- Siga-me no Facebook para estar por dentro das atualizações!
0 comentários:
Postar um comentário
Fique à vontade para deixar seu comentário, sua participação é importante e será publicada e respondida após passar pela moderação. Todas as dúvidas e observações educadas são bem-vindas, mesmo que não estejam relacionadas ao tema do artigo, mas comentários que faltem com o respeito não serão publicados.
*Comentários apenas com links não serão publicados, em vez disso procure resumir o conteúdo dos mesmos.
*Identifique-se através da sua conta Google de um modo que seja possível distingui-lo dos demais, evitando o uso do anonimato.